sexta-feira, março 27, 2009

O Cativo

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Klee, Captive
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I

A minha mão tem só um
gesto de afugentar;
da fraga húmida caem
gotas sobre as velhas pedras.

Ouço só este bater,
meu coração acompanha
este cair das gotas
e com elas se desgasta.

Se caíssem mais depressa,
se outra vez viesse um bicho...
Algures havia mais luz -.
Mas, que sabemos nós?!


II

Imagina o que agora é céu e vento,
e respiração da boca e luz dos olhos,
petrificado em volta do lugar
que te rodeia o coração e as mãos;
e o que é amanhã e: depois e: mais tarde
e o ano que há-de vir e os mais que virão -
que era chaga aberta em ti, cheia de pus,
toda inflamada, e não mais amanhecia;

e que tudo o que foi endoidecia
e esbracejava em ti, a linda boca,
que nunca ria, espumante de riso;
e que o que foi teu Deus era só o teu guarda,
e metia, de mau, na última abertura
um olhar sujo. E tua ainda vivo.


Rainer Maria Rilke
(tradução de Paulo Quintela)



sábado, março 07, 2009

Cartografia

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"O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é o inferno, e fazê-lo viver, dar-lhe lugar."

Italo Calvino "As Cidades Invisíveis"