domingo, janeiro 28, 2007

Nota do Provedor

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Olá estimadíssimas pessoas! Venho informar-lhes que este beco dos apetecimentos estará temporariamente sob a minha alçada, o que equivale a dizer que selo estes apetites até ordens superiores em contrário. Como os poucos (e porventura cautelosos) aventureiros que passaram ao largo desta selva de palavras se terão apercebido, urgia tomar o lugar do escriba que afincadamente tem feito por nada dizer, cedendo em requebros oitocentistas a uma ligeiríssima indisposição, vulgo azia. Movo-me escrupulosamente pelos coevos princípios da austeridade: poupança extensível ao celestial reino da blogosfera. Nada de desbaratar bits internáuticos com dislates inconsequentes. As palavras são caras e custam tempo. Como todo o provedor moral, penso nos pobres leitores que investiram segundos preciosos a avaliar da futilidade deste espaço. Quero terminantemente pôr cobro a esses maus investimentos, vai daí ter-me sido incumbida a tarefa (presumo que chamar-lhe serviço público não soaria forçado) de lhe atirar areia para os olhos durante uns tempos, a ver se lhe dá para ler e escrever como gente. Contudo, apesar de um certo desencanto meu, reside em mim, no hipotético crente em regenerações individuais, a esperança - ainda reside, sim - de que o meu caro antecessor renove a frota de apetites ao longo do seu interregno, confiando eu que alguns possam suscitar matéria aprazível para figurar nuns quantos esparsos caracteres. Muito gostaria eu que a areia que lhe atiro aos olhos o reenviasse para uma introspectiva travessia no deserto, a fim de que dessa experiência saísse com a pele tisnada e endurecida como curtume, que é o mesmo que dizer: mais fortalecido.

Atenciosamente,
O Provedor
(aquele a quem lhe apetece e verdadeiramente prova, e que, consoante os casos, aprova ou reprova).
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Pesadelo em formato parábola

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A sua presença faz-se sentir ao longe por meio de um rugido.
Refugiei-me no cimo das escadas que dão para o sótão. Sem saber muito bem porquê, estou inteiramente ciente de que não conseguirei abrir a porta e por isso nem sequer me esforço por abri-la. Desconheço o que me levou a refugiar-me ali, mas decerto que não foi a ideia de entrar no sótão e de me esconder por entre as caixas e a tralha que os anos encarregaram de cumular de pó. Sei que em breve ficarei encurralado, mas ainda assim permaneço ali como se não tivesse outra escolha ou, mais estranho ainda, como se isso em nada me assustasse. E de facto a lenta escorrência do tempo faz-me crer que teria todo o tempo do mundo para encontrar um melhor esconderijo. O que me leva a depreender que na verdade não me escondo, que apenas aguardo o que se seguirá. Como uma inevitabilidade, faça eu o que fizer em contrário.

Quase no topo das escadas há uma descontinuidade na parede e por entre os varões que a atravessam tenho vista privilegiada para o corredor em baixo. Nessa espera silenciosa, começo a sentir cada pancada no peito como se me encarregasse de dactilografar palavra por palavra a minha sentença de morte. Esta súbita viragem na estranha calma que vinha a sentir faz-me sentir traído e abandonado por mim. A pedra no sapato estava lá, sentia-a perfeitamente, mas não lhe fiz caso: devia ter suspeitado de que toda essa calma era estranhamente anti-natural. É então que o vejo sair pata ante pata do meu quarto, mesmo ao fundo do corredor. Diria que é um leopardo. O padrão de manchas assenta que nem uma luva de veludo no seu corpo esguio. Avança lentamente em direcção às escadas, como se um sentido mais depurado que toda a amálgama dos sentidos - para mim algo de inconcebivelmente assustador - lhe revelasse exactamente onde estou e em que condição estou: sem saída possível. E não faço mais que aceitar a impossibilidade da fuga de forma resignada. Sustenho a respiração enquanto o vejo subir degrau após degrau com o olhar pousado em mim. Desvio os olhos dessas pupilas penetrantes para as angulosidades das espáduas. Quando o animal se imobiliza num degrau, a protuberância das espáduas é mais pronunciada. Sem me aperceber, rendo-me a um certo fascínio que a beleza do animal desperta em mim. O meu instinto de sobrevivência só se revela quando dou por ele perigosamente perto e lhe começo a desferir pontapés nas fauces para o manter à distância. Estranho a sua atitude para comigo. Investe com as patas como um gatinho que apenas quer brincadeira. Mas nem por isso deixo de lhe bater. Pode ser apenas estratégia dele...

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As minhas mazelas são insignificantes quando comparadas com as do animal. Vejo-o retroceder, vergado, e a arrastar-se em muito mau estado. No corredor, um senhor de bata branca troca vivas impressões com mais duas pessoas. Pelo que depreendo está furioso com a minha acção. O parecer geral é de que a minha atitude foi mais do que despropositada. Começo a pensar para mim: “E se ele afinal tivesse vindo por bem?” Tinham-me dito que andava um animal enraivecido pelas divisões da casa e que ele quase arrancara a perna a uma pessoa. Apesar de vivermos na mesma casa, não conhecia a pessoa em questão, nem podia avaliar da veracidade do que se dizia a respeito do seu estado. Terei avaliado mal as intenções do animal?

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sábado, janeiro 27, 2007

De profundis

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O caos germina de onde menos se espera. É uma erva-daninha que em pouco tempo asfixia toda a ordem que demorámos a congregar.
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sexta-feira, janeiro 26, 2007

Que sabem as sombras?

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Que sabem as sombras? Que por mais que estiquem os braços virá, terrífica, inadiável, a luz negar-lhes a existência e a passagem ao mundo que aspiram? Saberão da sua imaterialidade? Da sua plasticidade e deformidade? Do seu alongamento e encolhimento ao sabor de humores desconhecidos? Do seu negrume efémero, dos seus cinzas intermitentes? De como são projectadas ao longo de superfícies que ora lhes são lisas, rugosas ou angulosas e lhes esbatem os contornos? Que estão sujeitas à rotação de um foco de luz que lhes é hierarquicamente superior e inclemente face aos seus pedidos e desejos? Que a sua condição é a de não terem olhos e intuírem o mundo à distância com que são geradas? De nunca saberem que porção de terra irão ocupar mal o novo dia se erga? Que a busca por um sinal de abertura é colocar a fasquia mais alta que a parede e mais rasa que o solo onde sobrevivem a custo? Será o silêncio que as acompanha indício de conhecerem uma ou outra resposta e lhes ter sido vedada o poder da fala, da revelação, para não caírem na tentação de trair a velha lei, segundo a qual cada um de nós deve encontrar as suas?
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quinta-feira, janeiro 25, 2007

Elixir [2]

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autoria de Tracy Shuster
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Apetece-me escrever sobre uma senhora que anda aqui na universidade. O cabelo branquinho, apanhado numa trança comprida, não engana quanto à idade. De resto parece-me uma jovem em todos os aspectos que pude depreender. A sua fisionomia doce lembra-me invariavelmente a Jane Godall. Nas roupas coloridas julgo notar um resquício contido dos tempos hippies. Conversei com ela uma vez ao almoço faz já uns anitos. Trocámos palavras mais ou menos circunstanciais que entretanto se perderam no tempo. Anos depois vejo-a passar por mim, apressada, com aquela genica que sempre lhe descortinei enquanto observador à distância. Ela não me reconhece, claro. Minutos mais tarde ela junta-se à fila nas cantinas para a Vegetarina, onde também eu aguardo vez de me sentar frente a frente com uma deliciosa empada de soja (não se fiem muito no nome que dou aos acepipes vegetarianos). A ajudante de cozinha, enfiando sucessivamente empadas nos pratos, faz-lhe um reparo maroto àcerca do facto dela vir em boa companhia. Percebo então o motivo do seu passo apressado ao passar por mim instantes antes. Ela responde com a simpatia e frescura que lhe reconheço: que sim, que era verdade, mas que lamentavelmente tinha feito esperar o seu amigo indiano. E ao dizê-lo sorri para ele. Ávida de conhecimento, de estabelecer novos contactos, de estreitar laços, fascinada pela vida, curiosa por lhe extrair a riqueza, é para mim um exemplo vivo de que a idade nunca é um empecilho. Só em mentes que se deixam amorfizar.
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Elixir [1] (a relatividade dos conceitos)

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* Francisco de Goya - Les Vieilles (à esquerda); Les Jeunes (à direita).
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segunda-feira, janeiro 22, 2007

«Um Manto de Ternura»

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Arthur Wardle, Moon Kissed - Endymion

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Dizer-te, meu amigo,
que, à uma da manhã
e desta noite,
está lindo o nevoeiro

que um manto de sossego
assim inteiro
eu desejava dar-te
- e ter comigo.

Enviava-te um frasco,
se pudesse,
fechado em carta azul,

ou por fax de sol
(não fora o medo que o sol
o desfizesse)

Assim, mando daqui
esta espessura
de cheiro muito branco
e muito belo:

um manto de ternura
dobrado num novelo,
que chegue
até aí.


Ana Luísa Amaral


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sábado, janeiro 20, 2007

Stars

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Estrelas me dizem onde moro quando contemplo os céus e das fachadas se derramam nos passeios.

O bairro era um autêntico labirinto de ruas. A música que provinha dos bares, mesclava-se cá fora com as conversas. E à nossa frente, a nossa estrela saltitante em céu nocturno...

Perscrutava-te o sorriso, quando graciosa furavas por entre a multidão. Voltavas luminoso o rosto a inteirares-te de que te seguia. Acho que te lia nos olhos que te sabia bem estar sob o foco dos meus...

Estendias-me as mãos como quem me queria levar em subida, ascender contigo num recanto que se tornasse nosso. E sabia-me bem ser levado assim...

Abancar num sítio calmo, poder falar contigo, desabafar das entranhas o que só guardamos para nós, aquelas confidências que se gravam nas pedras que nos escutam, que tonram as horas e os lugares pertença nossa.
A felicidade de um ombro assim, é para mim da mesma natureza que a luz que flui do conforto de uma casa de prodígios.
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Numa qualquer rua de Paris *

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«Em Nome»


Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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Tenho seguido a linha de sombra que te desenha nas calçadas que percorro. Mas as nuvens são intromissas e por natureza escondem o sol. Desvanecem-se assim as sombras sob a sombra maior que elas trazem. Perdido, desvio os olhos do chão para os signos caóticos inscritos nas paredes. Busco nelas uma qualquer palavra que se aparente a uma casa onde me sinta bem. Sílabas que me aconcheguem, ditadas de um país estrangeiro, e que digam olá ao desenraízado que sou. Num poço de contradições faço chiar as unhas ao longo do cimento, como faria Freddy Krueger com as suas garras de aço perseguindo-me num pesadelo terrível. Arrependo-me do gesto. Afasto essa hedionda imagem da minha mente, confiando pedaçinhos de mim - os que me sobram e pendem do peito como escaras - nas irregularidades das paredes. É que transformar o belo no feio, para suportar a impossibilidade de um sonho, está nos antípodas de mim. Com isto, sabendo isto, preencho os retículos de uma cidade imaginária com graffitis que sinalizem a minha passagem, a mundividência das coisas boas, certo de que voltarei a passar por ali e não me reconhecerei nos gatafunhos que ali deixei. E nisso a única coisa que realmente importa será a empatia com esse desconhecido, que não terei forma de saber que fui eu em tempos. Um sabor de lembrança que de tão longe, por instantes, voltará a tornar-se inexplicavelmente íntimo.
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* na Paris onde acredito já não poder ir... Disse Paris, mas poderia ter dito Nenhures...
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sexta-feira, janeiro 19, 2007

Os silêncios da fala

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Klimt, Serpents d'eau I (1904)


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São tantos

os silêncios da fala



De sede

De saliva

De suor



Silêncios de silex

no corpo do silêncio



Silêncios de vento

de mar

e de torpor



De amor



Depois, há as jarras

com rosas de silêncio



Os gemidos

nas camas



As ancas

O sabor



O silêncio que posto

em cima do silêncio

usurpa do silêncio o seu magro labor.



Maria Teresa Horta
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Howl at the Moon

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Ric Standridge, Howl At The Moon (1996)

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E em resposta apenas um silêncio ensurdecedor...
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De cronómetro ao peito

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Dozier Bell - Moon, 01:00 (2005)

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O Poeta em Lisboa

Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
Dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta;

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
À luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, artistocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.


António José Forte
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Onde jaz o teu sorriso? [1]

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Lucien Freud - Tête d'homme, Portrait de l'artiste (1963)

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Tenho os meus momentos, como toda a gente. Mas desconfio que aos olhos de muitos passo irremediavelmente por sisudo. Então vá lá, say "cheeeese"!
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quinta-feira, janeiro 18, 2007

Spiritchaser

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Não se trata de um jogo de palavras motivado por um qualquer spleen: dar tréguas ao espírito com o Spiritchaser dos Dead Can Dance. Um álbum que nos caça fisica e espiritualmente.
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P.S. . Cerca de uma hora após esta postagem, arrepiei-me ao reler esta coisa: "Um álbum que nos caça fisica e espiritualmente". Palavras de ordem que parecem ter sido directamente expedidas das mentes "criativas" de uma qualquer empresa de marketing. Um slogan bem ao nível de um desodorizante barato com supostas qualidades de caça ou de atracção (como preferirem). Posto isto, urge repensar seriamente na continuidade de um blog que produz pérolas deste calibre.
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Sonho de uma noite de... [2]

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Ann Smith, Titania and Bottom Series - Morning
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Flores


Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
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terça-feira, janeiro 16, 2007

Sonho de uma noite de... [1]

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Ann Smith, Titania and Bottom Series - Sleeping Couple
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TITANIA.
Come, sit thee down upon this flow'ry bed,
While I thy amiable cheeks do coy,
And stick musk-roses in thy sleek smooth head,
And kiss thy fair large ears, my gentle joy.
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excerto da peça "A Midsummer Night's Dream" de Shakespeare.
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Midnight summer's dream

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Elliott Erwitt, New York (1955)
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Pois é... Mas não é Verão, nem estou em Nova Iorque, nem os ponteiros ditam meia-noite. No que respeita às horas há que tempos perdi esse comboio. Ou esse carro, sendo mais fiel ao sonho. Mas não seja por isso, que sem demora apanho já outro. Sei que quanto mais veloz correr a noite, mais alimento aos sonhos irei buscar...
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sábado, janeiro 13, 2007

Two Faces

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Lauren Simonutti
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As duas faces do estudo, as letras num linguajar invertido e a página que teima em não se deixar voltar. Contemplar as dificuldades do sacrifício de uma das faces em prol da outra.
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Um catéter cerebral, please!

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Murakami, Blue Black (1998)

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brainwashed with the
hallucinagenics in my system
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Tricky, Strugglin' (Maxinquaye)
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sexta-feira, janeiro 12, 2007

Temple of Longing

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Klee, Mural from The Temple of Longing (1922)
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Pela quantidade de setas, apontando nas mais variadas direcções, parece-me que o templo se deva situar em todo o lado onde a vista assente. Os cultos aí prestados terão provavelmente a entoação das tardes que se arrastam lentamente. Sol e lua, em dupla aparição, vigiando-se mutuamente, encarregam-se de que esteja tudo muito bem iluminado para que não se corram grandes riscos ao metermo-nos por todos os trilhos.
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Folhas caducas

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Arthur Boyd - Wimmera, Waterhole with Birds
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Braços nus, despojados de alimento. Pouco tempo resta para que assim ressequidos continuem a atrair as atenções. Já o tronco se vai dissolvendo no fundo das águas estagnadas e os miasmas, a pouco e pouco, farão por dispersar as poucas aves resistentes. Até mesmo aquelas que em primaveras anteriores acasalaram na sombra e na frescura das ramagens. Boas recordações, que cremos imutáveis e permanentes, são preteridas por vôos mais pragmáticos quando escasseia o alimento? Lembranças, boas ou más, não estão sempre em permanente reconstrução? Em queda como folhas caducas, para depois gradualmente integradas no húmus fertilizarem outros solos?
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quarta-feira, janeiro 10, 2007

Percurso paralelo



Charles Blackman, The Journey

Nunca serei uma mão. Ou então, serei uma mão reticente, sempre em luta interna contra o desejo de posse, contra a vontade exclusivista do ego de te ter só para mim. Só a maturidade, a balança do sentir, nos ensina o equilibrio entre o que nos dita a vontade secreta e o respeito pela vontade e respiração do outro. Mas ainda assim pergunto-me até que ponto, até que nuvem, até que azul ou cinza lá no alto, conseguirei resistir à tentação de te agarrar, se o medo de te ver partir para paragens mais longínquas cresce a cada novo dia? E é tão vasto e promissor o mundo que desejas percorrer... E há mesmo em mim o desejo sincero de te ver crescer nesses vôos, de não te reter em terra, nem limitar-te os sonhos. Mas serei eu capaz de te acompanhar, de seguir a teu lado, de crescer juntamente contigo? O medo, esse atrofio senil do coração, faz-me querer agarrar-te nem que seja um pouco, ter-te nas minhas mãos, como um belo pássaro a quem afagamos o colorido das penas e o libertamos de seguida. Seja como for, creio nisto: devolver-te a liberdade, sempre, como quem nesse gesto - das mãos que se abrem em flor de dedos, ainda agraciados pelo teu calor -, deposita a coragem de te querer feliz mesmo que longe de mim e a prova de amor que é o respeito pelo trilho que queres percorrer. Porque sei que o brilho dos teus olhos é perfeito quando vogas livre nos céus... e isso... isso, guardo-o em mim, com toda a força de mãos e olhos.



Pariggi! Pariggi! (2)

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Já estou quase como as três irmãs na famosa peça de Anton Tchékhov, que passavam a vida a repetir um só desejo: Moscovo! Moscovo!
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Pariggi, Pariggi...

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Marlon Brando e Maria Schneider
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A estudar e a dar-me para pensar em Paris... Como em algumas BD's - em que acção e pensamento têm forçosamente que ser acelerados por uma questão de economia de espaço -, será que daí ao "Último Tango..." irá apenas a distância de um quadradinho?
Ó Grizzly, eu bem que queria estar noutro sítio... Mas não pode ser! Tenho que estudar, pá!
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Paris aos quadradinhos

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David Hockney - Place Furstenberg, Paris, August 7, 8, 9, 1985
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Hockney, para compôr este quadro, deu no mínimo dos mínimos três dos seus dias. Eu, no mínimo dos mínimos, daria de bom grado três dos meus para lá passar um apenas. Para quem nunca teve a felicidade de lá ir, "apenas" é como quem diz...
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terça-feira, janeiro 09, 2007

Rima semântica

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Há bastante tempo que não me deparava com a palavra "mafarrico". Nem por coincidência, vejam só, até rima com maçarico. Diz-me o Grizzly Bear que, neste post em particular, a rima até que nem soaria forçada...
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Grizzly Bear, um ser voraz

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Michael Bergt, Awakening (2002)
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Ou digamos que... um ser que está em todas. Passo a exemplificar:
- na música: em 2006 os Grizzly Bear lançaram o álbum Yellow House (pop-rock com belas e ricas texturas sonoras, fazendo uso de vários instrumentos poucos usuais no género).
- no cinema documentário/biográfico: Grizzly Man (2005) realizado por Werner Herzog (pelo teor, tem permanecido na minha lista dos "para ver". Haja estômago...).
- na indústria de móveis, etc.: Grizzly Industrial (ignorem este).
- no desporto: Memphis Grizzlies
(a sério, ignorem também este).
- na imprensa: Big Bear Grizzly
(e ignorem este também, please).
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E páro por aqui. As voltas que uma imagem me obriga a dar, só para diluir um pouco a ambiguidade original da postagem...
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segunda-feira, janeiro 08, 2007

O geógrafo

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Vermeer, The Geographer
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Curvado como o geógrafo sobre o mapa, sobre o seu mapa pessoal. De olhar suspenso, em plena tentativa de decifração, de redefinição de conceitos, de reposicionamento do eu em função de pontos cardeias objectivos e subjectivos. Olhar fixamente para a textura da parede em frente (um monitor de PC também serve), como se um dos geógrafos precedentes aí tivesse retalhado a compasso um desabafo: ainda está por inventar um GPS interno que de imediato nos dê as coordenadas em períodos de crise.
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domingo, janeiro 07, 2007

Nicht relativ und grün

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"Switch in, switch on, switch off
i'm lost in contradiction
feed me my visuals
a flashback... a flashback from way back
i'm strugglin... strugglin
do you know what its like to struggle?"
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Tricky, Strugglin' (Maxinquaye)
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sábado, janeiro 06, 2007

Twin Peaks mood

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Os morteiros em plena noite
caíam sob o escrutínio da coruja.
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Ao som de Laura Palmer's Theme da autoria de Angelo Badalamenti.
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Para ti, pai

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foto de David Maialetti


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A tua morte atirou-me para fora do mundo,
para uma região fria e pantanosa.

Após o incêndio:
o difícil regresso de um exílio,
o retomar do trabalho árduo
da reflorestação da alma.
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Como o tempo passa... Como as coisas pequenas num dado momento se agigantam aos nossos olhos e depois se extinguem tão facilmente da memória... Como é tão verdade que o essencial fica para sempre guardado. Faz hoje 17 anos que deixei de te poder fisicamente abraçar.
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In memoriam

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Destino comum dos Homens:
arder no Hades da memória
como seta queimando o ar
e o eterno alvo errando.
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sexta-feira, janeiro 05, 2007

Branco sobre branco

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Malevich - Suprematist Composition, White on white (1918)
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Será que fazer do presente uma tela em branco, na qual se projectam sonhos futuros, equivale a tornar o dia-a-dia numa rotina de páginas em branco?

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terça-feira, janeiro 02, 2007

Para a Ilustrana:

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De gatos já gostava. De nuvens assim assim. Nos últimos tempos, ela tem vindo a fazer com que goste mais de vestidos com bolinhas. É preciso força, genica e alguma estatura para contrariar as nuvens e espremer delas o que há de bom. Espreitar os desenhos dela é fazer um pouco assim aos dias. Do "atelier" dela parto sempre com um sorriso embevecido de criança.
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segunda-feira, janeiro 01, 2007

Almas

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Dantes havia o olhar. Agora temo as cortinas, os véus, o silêncio.
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Scream

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Este nível de exposição, de lavar feridas em público, incomoda-me. Mas a necessidade do grito sobrepõe-se ao pudor. E se não grito aqui, onde mais poderei fazê-lo? Aqui torna-se menos audível, menos pesado, do que se o libertasse no exterior e o fizesse notar aos que me rodeiam. Aqui dilui-se nos múltiplos olhares anónimos e da escorrência das palavras vem uma ténue sensação de limpidez.
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Até parecia premonição

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As auto-citações nunca me agradara
m. Parece-me um gesto de pouca humildade. Excepcionalmente, fá-lo-ei: "Mais dificil é persistir na luta para que bastantes milhares de segundos depois o novo ano continue a revelar-se bom."
Claro que isto nada
tem de premonitório. Mais cedo ou mais tarde, viriam também os maus momentos. O que se passa é que não ouso sequer contar os segundos que se passaram. Foram tão poucos...
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First day inner voice

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Colunas de som emudecidas, exigência da minha inner voice. O corpo dobrado sobre o sofá de sala, sem reacção, amachucado e esquecido de si, como um pano de cozinha repleto de manchas à espera de ser atirado para a máquina. A impossibilidade de fechar os olhos, de olhar para dentro o abismo que se vai cavando cada vez mais profundamente. O tempo só dá sinal de não se ter suspenso, porque a luz do dia vai desaparecendo pelas frinchas dos estores. O que até é bom, dado que às escuras as lágrimas deixam de turvar a visão. A transparência líquida do luto, já não visível, passa apenas a ser notada como fonte de humidade.
Em redor os objectos foram todos engolidos pela noite. Tento recriá-los mentalmente para ter com que continuar a prender a minha atenção e não passar a dispersar-me por outros pensamentos. A noite baila-me nos olhos, comunica comigo como se me estivesse a impingir os seus graus negativos.


O telefone toca, violentando o silêncio. Uma chamada para mim. O esforço de erguer um corpo pesando toneladas a mais. O equilíbrio precário a cada passo. Tentativas de fazer vibrar um pouco as cordas vocais. Palavras balbuciadas com aquele automatismo de último recurso, que não se sabe bem onde se vai buscar. Um desabafo e a disponibilidade de um amigo para ajudar. O não poder revelar a ninguém o que verdadeiramente me consome. Subitamente, um afluxo de sangue ao cérebro. O enjoo. Os calafrios. A despedida à pressa.

No W.C., o queixo pousado nos joelhos, mãos entrelaçando as pernas. Olhos seguindo as linhas dos azulejos. O pedido de uma fractura no espaço, milimetricamente condizente com a estreiteza das linhas, por onde pudesse ser tragado.

Dedos trémulos a teclarem estas linhas. Pausas e recomeços. O avolumar do choro sem nunca conseguir exceder o limiar de umas quantas lágrimas. A contenção quando o que se quer é o contrário: o alívio, sempre breve, mas ainda assim alívio. O que se segue à enxurrada.
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