sábado, março 31, 2007

Happy happenings

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Como por exemplo, descobrir este senhor. E porque até tinha a cena do crime guardada no PC, remeto para aqui. It's playtime.
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Rabiscos e coriscos

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Sempre gostei de desenhos feitos por crianças. Em parte também porque desde criança que gosto de desenhar. Têm um encanto especial, reflectem um olhar muito próprio - mágico, feérico. Os traços por vezes tão invulgares que nos prendem a atenção. A um olhar pouco sensível podem parecer uns meros rabiscos. Mas estão longe de o ser. Tentasse eu imitá-los e sairia uma coisa sem jeito nenhum. Digo com uma pontinha de orgulho que possuo uma mini-colecção de desenhos realizados pelos meus primos, de quando eram mais novitos e vinham cá a casa e, entre vários tipos de divertimentos, assentavam por alguns minutos a desenhar e a colorir. No fim, regra geral, ofereciam-me os desenhos. Teimavam comigo se lhes dizia para os levarem para casa e mostrá-los aos pais. Guardo-os religiosamente, como lembrança do que os seus olhos viram e as suas pequenas mãos em tempos criaram. Para mim é como se folheasse um atlas colorido, cheio de referências passíveis de serem descortinadas se olhadas com olhos de ver. É minha intenção devolvê-los daqui a uns anos, quando tiverem idade para lhes dar o devido valor: é que são mesmo pequenos tesouros da sua infância, boleias privilegiadas para uma viagem única ao passado...
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sábado, março 24, 2007

"The Passenger / Profissão: Repórter" de Michelangelo Antonioni (1975)

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Diz-se dos filmes dele que são formalmente irrepreensíveis, inovadores, eloquentes na exposição do argumento. Que ele está para o cinema, como Henri James estaria para a literatura. Que ele nos ensina a olhar, como se o fizessemos pela primeira vez.



Neste filme em particular, parece-me que a tónica do olhar é sobretudo abordada sob o prisma das diferenças culturais. Alguém que chegue a uma cultura distante e procure compreendê-la, tem sempre o olhar de origem a contaminar-lhe a percepção das coisas. Uma zona de fricção que resiste a apreendê-la no seu elemento, tal qual ela é para os autóctones. Por mais que procure estreitar pontes, submergir-se no novo, tentar ver as coisas pelo prisma do outro, as perguntas que lhe saiem da boca soarão sempre às de um estrangeiro. Dizem mais da sua cultura do que daquela sobre a qual ele se interroga. O mesmo com as respostas. As que ele receber dirão mais daquilo que ele deseja saber ou escutar. Assim o diz um habitante de uma aldeia africana entrevistado por David Locke (Jack Nicholson). Uma das mensagens que ecoa ao longo do filme, apesar da diversidade de contornos, vem nessa linha: é impossível cortar relações com o nosso background.
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De Antonioni conhecia apenas o "Deserto Rosso" e o "Blow Up". Comum a todos eles é a sensação de estranheza com que se fica no fim. A mim obriga-me a revê-lo mentalmente, em busca do sentido que parece ter querido fugir-me ao longo do filme. E ainda estou sob o seu efeito. Não é alheio a isto o facto de Antonioni ser reconhecidamente talentoso a discorrer visualmente sobre o tema da alienação.

Algumas notas soltas sobre o filme:

- Numa aldeia africana, alguns dos habitantes são danados a cravar cigarros aos gringos que lhes apareçam com ar perdido.



- A impotência de David Locke, frente ao jipe encravado nas areias do deserto, traduz bem o seu cansaço existencial.


- Simular a própria morte, morrer para os outros, como escapatória.


- Ver um bocadito de Barcelona - a do inevitável Gaudí - pelas lentes de Antonioni.


- Viajar num descapotável, ao sabor da inconsequência, com Jack Nicholson e Maria Schneider.


- Levar com poeira nos olhos ao embrenharmo-nos na Espanha profunda, nessa que não entra nos roteiros turísticos. Pode ser esse o resultado, ou pior ainda, quando se persiste na loucura de adoptar uma nova identidade. Os laços com o passado não se cortam assim impunemente. Não se lhe foge por mais que à nossa frente a estrada se abra em múltiplas direcções. A alienação, por mais conotada que esteja com a errância e a dispersão, acaba por ser a via mais rápida para a auto-imolação.


- Ainda estou para perceber a técnica por detrás daqueles cerca de sete minutos finais, sequenciais, em que a câmara vai abrindo em zoom para o exterior por entre as grades de uma janela, como se atravessasse o minúsculo espaço entre elas. (Creio que esta cena ombreia com a abertura do "Psycho" de Hitchcock.) E nesses sete minutos, elípticos, cabe o tempo de uma morte.

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sexta-feira, março 23, 2007

Gosto dos filmes do Wong Kar-Wai...

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Pela fusão plástica entre som e imagem. Pela cadência dos corpos. Da sensação de tempo e movimento suspensos - instantes que parecem querer tocar o estado de espírito da personagem, facultar-nos o acesso ao seu interior a partir do exterior sonoro e visual. Gosto da atenção dada ao olhar (com tempo suficiente ao registo de cada nuance), ao modo como a personagem se deixa simplesmente estar. Da expressividade do rosto e dos gestos captados com margem de manobra suficiente para o espectador compor a sua própria ideia da essência da personagem, do teor dos seus pensamentos, das suas divagações... Gosto da atenção especial que é dedicada à fotografia e à iluminação, à composição cuidada de cada plano. Da luz que incide sobre os corpos e sobre os rostos. Da forma como a noite e os seus locais, nos mais variados ritmos, são captados. Gosto da paleta de cores que vai desde o vermelho vivo, carregado, físico, passando pelo amarelo até às cores mais escuras. Gosto das luzes de néon que conferem uma certa frigidez aos exteriores. Gosto da luz dos candeeiros que iluminam os quartos; do fumo do tabaco que se evola ao nível do rosto, da entrega ao prazer de fumar e do efeito que isso confere ao vermos a personagem imersa nos seus pensamentos; do abandono dos corpos em si, da languidez, das pernas esticadas sobre a cama; da sensualidade que há num corpo cujo desejo não pode nem é saciado; dos olhares solitários derramados de uma janela com vista para as vias, passeios e fachadas. Gosto dos interiores: das casas, dos restaurantes. Do contraste entre o silêncio mais desolador e perturbante que assiste a um rosto e o buliço à sua volta.
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segunda-feira, março 19, 2007

Travelings

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A troca de olhares com uma pessoa desconhecida é, no estado de vigília, um dos fenómenos oníricos por excelência. Além dos nossos devaneios, das nossas prospecções temporárias por mundos possíveis e ideais, demoramo-nos a escrutinar os sinais que transparecem do rosto da outra pessoa, a tentar perceber se há ou não correspondência com os nossos. E frequentes vezes desejamos mesmo que haja, o que também cai na categoria do onírico. Mais raro é crermos realmente nisso, mas esta é uma atitude que destoa nessas circunstâncias e fazemos por adiar essa realidade até ao máximo. Porém, irremediavelmente, acabamos por acordar.
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sábado, março 17, 2007

Cega

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Durante longos, inconsequentes anos, a vida foi Sega frente a um ecrã de televisor; a coluna, curvatura de sofá; as nádegas aplanando-se no assento; os olhos pesados como halteres; os dedos como se batessem furiosas castanholas. Balanço negativo - a vida lá fora tão bonita, irremediavelmente dissipada; livros esquecidos nas prateleiras; défice cultural e social. Ai o social e o mais que se omite... Não sei como sobrevivi. E, sim, a história inverte-se: agora é a minha vez de temer pelos jovens de hoje. Mas porque raio não deixo o sótão em paz? Se pudesse voltar atrás, em vez de jogar, acho que as minhas tardes, à falta de melhor, teriam sido bem mais interessantes se passadas a ler a extensa correspondência entre o James Joyce e a sua esposa Nora...
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Zelda [2]

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A long long time ago... Com o Super-Mário era um tu-cá-tu-lá, a assobiar a melodia (não muito diferente da qualidade das músicas para telemóvel), a evitar cogumelos venenosos, (na pior das hipóteses da espécie Amanita phalloides), a demolir fosse o que fosse aos saltos (tipo bola de ping-pong) e seguir non stop, vamos embora, que para a frente é que é caminho. Com o Zelda não. Nunca joguei, mas ficou-me no imaginário. Havia o eterno desafio de ir jogar a casa de um colega, mas como morava longe nunca se concretizou. Ficava-me pelas descrições, pelas maravilhas tecidas à hora do recreio. Não que isto interesse a alguém, pois, mas o imaginário é mesmo assim. Há nomes que se revestem de mítica pelas vias mais insuspeitas...
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Zelda

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Zelda Fitzgerald, Ballet figures

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Zelda Fitzgerald pintava e estudou ballet. Não fazia ideia. Já antes de o saber a considerava uma grande mulher. Um espírito livre, como talvez o dessa rainha cigana fictícia, de nome exótico. (Foi precisamente nessas ficções que a mamã Minnie, ávida leitora, descobriu o nome perfeito para dar à filha.) Infelizmente, no que diz respeito à criação artística, Zelda foi (acho eu que foi) mais ou menos remetida à "sombra" do marido, Francis Scott Fitzgerald, escritor que entrou no cânone literário com The Great Gatsby. Quando se fala dela, vem inevitavelmente à baila, não os seus talentos, mas os loucos anos 20, o álcool, a esquizofrenia. Sobre os seus quadros, um "aparente" véu de silêncio. "Aparente", ou, pode bem dar-se o caso, desatenção minha. Incultura, isso, certamente. Assim, hoje, neste final de tarde, sinto que fiquei um pouco mais rico. Fica-me a bulir cá dentro a ideia de que tamanha energia - e Zelda dava e vendia energia - se pacientemente canalizada em arte, pode de facto dar bons frutos.
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Grupo heterogéneo

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Georges-Pierre Seurat, Circus Sideshow, 1887
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Chegarmos de fora. Sermos olhados de fora. E receber um não como leva todo aquele que vem de fora: por eufemismos, por vias indirectas e atabalhoadamente esfarrapadas. "Somos um grupo heterogéneo (...) dificuldades em compatibilizar horários (...)" Tudo bem. Compreendo. Mais um e o grupo viraria um circo itinerante...
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Adenda

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Ela era tão nervosa, mas tão nervosa, que para se acalmar, em vez de beber um copo de água com açúcar, despejava-o literalmente em cima dela. E assim se firmava nova adenda ao seu epíteto de "louca".
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Sem muletas

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Nisto do supostamente «bom-à-parte», nada de arrogância ou sobranceria. Muito pelo contrário. «Bom», não como adjectivação laudatória, mas antes como terminologia quantitativa, diz-me a estatística demolidora dos dias. O «à-parte» é dos estigmas mais sacanas que se conhece. Damos-lhe tempo e ele cola-se nos gestos, infiltra-se no olhar. Estigma and all that stuff. Cabisbaixos, carregamos sanguessugas dentro de nós. Claro que esta é uma condição sem direitos adquiridos. Nenhumas muletas para pedir e reinvindicar seja o que for. Pior que tudo seriam os tratamentos especiais ou de favor.
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Síndrome de Korsakov (Corso-à-cova?)

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"que faz, como talvez saibas, disse a tia Fini, com que a perda da memória seja compensada com invenções fantásticas"

in "Os Emigrantes" de W.G.Sebald
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Poucos entre os mortais viveram vidas que mereceram ser trasladadas em memórias épicas, como o pôde fazer o corso Bonaparte, no retiro do exílio. Não peço tanto, nem um por cento disso. E não sendo corso, talvez consinta, infelizmente, no «bom à parte». Quanto a estar de pé para a cova, não se sabe o dia de amanhã. O que sei é que cedia de boa mente um pouco de memória a troco de algumas invenções fantásticas.
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quinta-feira, março 15, 2007

Panóptico

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Há um lado obscuro em cada coisa,
mas também a dádiva para os que aí se demoram
ao longo de anos de errâncias e colisões.
Para onde quer que nos voltemos, brilham
no emparedado maciço das galerias escuras
os graffitis das derrotas pessoais e colectivas.
Raras vezes no concreto fendido vemos
os interstícios de luz, o sentido vivo
que ofuscaria o foco orgiástico da saída.

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28/3/2005
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quarta-feira, março 07, 2007

Algures...

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Festeja-se algures não sei bem o quê. Mas coisa boa há-de ser ou não haveria motivo para festa. Viver é saber isto de ciência certa, sem contudo se vir a saber onde se realiza a dita festa. Vive-se persistindo na ideia de que também nós um dia faremos parte dos bafejados pela sorte. Mas o nosso nome parece-nos insoletrável, sem meios de figurar na lista de convidados.
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Astrofísica aplicada

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Assim, o hiper-optimista padece de uma grave "deformação" de carácter. Já o do pessimista diz-se que não ata nem desata; que é uma espécie de singularidade imaterial, focada no tal ponto de origem, mas sem gozar desse quase inconcebível artefacto que é um ponto de densidade infinita. Falta-lhe portanto esse pequeno «danoninho» para poder granjear - segundo teorias depuradas de mentes way above us -, a designação de buraco-negro.
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Sim, estica o pernil...

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O optimismo comporta-se um pouco como uma corda elástica. Estica até certo ponto, podendo sem problemas voltar à posição de origem. Porém, forçá-lo além de um determinado limite resulta sempre, mas sempre, em deformação irreversível. E um exemplo válido é dado por aquele tipo de rosto que decidiu envergar um sorriso permanente.
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domingo, março 04, 2007

Futurologia nas entrelinhas

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As palavras que ficam sempre por dizer... Caberiam elas numa resma de folhas de papel? Não reside também aí o encanto de andarmos aqui? De algumas linhas ficarem por escrever? De aguardarmos ansiosos pela possibilidade de uma frase vinda do amanhã?
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Disponível para amar

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No “In The Mood For Love / Disponível para amar” de Wong Kar-Wai, entre muitas outras coisas, gosto: do vai-vém constante de Maggie Cheung pelas ruas estreitas, do modo como o seu corpo se movimenta nesse sobe-e-desce ao longo das escadas que ligam a rua à pensão - tudo isso intercalado ao som melancólico dos violinos. Gosto da afabilidade que transparece dos pensionistas à passagem dos outros inquilinos. Gosto da troca de olhares, dos sorrisos cúmplices entre ela e o Tony Leung no corredor da pensão ou quando se despedem à porta do quarto. Da forma como somos confrontados com a paixão latente entre ambos. A ligação reforça-se quando descobrem que os respectivos cônjuges vêm mantendo um caso. A partir daí vai-se instalando a luta entre os escrúpulos morais e a vontade de ceder ao desejo. Sendo traídos, terão legitimidade para fazer o mesmo? Havendo nisso uma possibilidade de vingança, será essa conduta menos condenável do que aquela que eles recriminam? Invade-os um rol de sentimentos que têm de ser reprimidos. A frustração, o incómodo apoderam-se dos gestos, vincam-se na postura. Gosto da cena que decorre no interior do táxi, a cabeça de Maggie encostado ao ombro de Leung, do silêncio que se instala por não ousarem tranpôr o limiar das palavras - das que ficam por dizer.
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Sonho de inverno

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O olhar reencontrado. Esse que soletra a nossa mais íntima morada. O olhar à deriva. Nesse halo longínquo, nessa tapeçaria dourada que se firma no horizonte. Os cabelos esvoaçantes ao vento, exalando o seu perfume, adocicando a maresia. O pedaço de cana, imparável, que rola frente aos nossos passos. O corpo curvado adiando a captura desse objecto rolante. O sortilégio da escrita que assinala na superfície lisa do areal a passagem de uma princesa. A duna cuja altura fica por escalar - ou a janela do seu castelo. E o mar que depõe aos nossos pés presentes inigualáveis.
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quinta-feira, março 01, 2007

Lepidópteros e o mito platónico [2]

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O mito platónico, não negado na sua essência, mas re-perspectivado: duas metades do mesmo ser que se procuram, que um dia se encontram, mas que não se podem juntar.

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O arco-íris que se some no céu já enxuto e as cores que se esbatem das asas fatigadas de tanto adejar. As metamorfoses da borboleta ao ritmo das do céu.

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O amor como aquela borboleta rara, de belos padrões de cores, furtiva a todo o tipo de rede que anos a fio persevere em conseguir capturá-la. A borboleta existe, algures, não existem é malhas para uma borboleta assim.
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Lepidópteros e o mito platónico

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"In his autobiography Speak, Memory, the writer and lepidopterist Vladimir Nabokov described a beautiful gynandromorph butterfly — male on one side, female on the other — that he had caught as a youth on his family’s Russian estate. Sadly, the butterfly was crushed when his stout Swiss governess sat upon his tray of specimens, leaving only a “headless thorax on its bent pin.” The image of an intact gynandromorph at [the top] — the more brilliant blue left side is the male half — is included in the magnificently strange book Rarest of the Rare, a sampling of curious artifacts from the Harvard Museum of Natural History. Among the rich finds: a fossil sand dollar that Charles Darwin picked up in Patagonia in 1834, during his voyage on the Beagle; an exquisite coiled boa constrictor skeleton, 300 vertebrae long; and Nabokov’s wooden cabinet of butterfly genitalia, the study of which enabled him to name seven new genera of Latin American blues."
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