quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Covers festivas

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O álbum "Version" (2007) de Mark Ronson é uma caixinha de surpresas. Destaco a participação da Amy Winehouse numa das faixas, com o seu vozeirão inconfundível. E ainda uma versão swingada do "Just" dos Radiohead, recheada de sopros e metais. Figuram aqui sons que o Tarantino não desdenharia ver entrar na banda-sonora de um dos seus filmes. Digo eu.



sábado, fevereiro 16, 2008

Gretchen em alemão, Margarida em português

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Murnau, Faust (1926)

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Bem-lhe-quer

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Caspar David Friedrich, Couple Gazing at the Moon (1807)

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Fausto:
Conheceste-me, anjo do meu coração,
Quando há pouco no jardim entrei?

Margarida:
Não vistes? Pus logo os olhos no chão.

Fausto:
E perdoas a liberdade que tomei?
E o que se permitiu minha ousadia
Quando da tal catedral saías no outro dia?

Margarida:
Era a primeira vez, fiquei perturbada;
Ninguém tinha nada que me apontar.
E pensei: Será que ele viu no teu andar
Qualquer coisa imprópria ou mais ousada?
Parece que ao primeiro olhar
Uma moça como eu decidiu namorar.
O que me deu, confesso não sei,
Para logo em mim achardes só favor;
Só sei que comigo me zanguei
Por convosco me não poder zangar.

Fausto:
Meu amor!

Margarida:
Posso?

Colhe um malmequer e começa a arrancar as folhas, uma a uma.

Fausto:
Que é isso? Um ramalhete?

Margarida:
É só um jogo.

Fausto:
Qual?

Margarida:
Não troceis! Ide!

Desfollha o malmequer, murmurando.

Fausto:
Que murmuras?

Margarida (a meia voz):
Bem-me-quer, mal-me-quer...

Fausto:
Oh, anjo em figura de mulher!

Margarida (continuando):
Bem-me-quer... mal... bem... mal-me-quer...

(Arrancando a última folha, num grito de pura alegria.)

Bem-me-quer!

Fausto:
Minha vida! É um divino oráculo.
O que essa flor te diz: que ele te quer bem!
Entendes o que isso é, que ele te quer bem?

Pega-lhe nas mãos.

Margarida:
Sinto um calafrio!

Fausto:
Não estremeças! Deixa que este olhar
E o calor desta mão te digam
O que é inefável é:
A entrega total e o sentir
Um êxtase que tem de ser eterno!
Eterno, sim! Seu fim seria desespero.
Um fim não! Não, sem fim!

Margarida aperta-lhe as mãos, liberta-se e foge. Ele fica um momento absorto e depois segue-a.
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in Fausto de Johann W. Goethe (tradução de João Barrento)
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sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Oblivion

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"Em tempos em que a ciência social começou a se aproximar da televisão como instauradora da realidade (Baudrillard, por exemplo), o cinema [Cronenberg, Videodrome] deu a sua contribuição mais espetacular e apocalíptica à questão, num claro artifício pavloviano de ação-reflexa."
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"A desumanização é aterrorizante, as relações se dão todas pelo vídeo. O mundo daqui em diante será oblivion [esquecimento]." (daqui)
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Body piercing's next step

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"While serving as a guest on a talk show, Max meets Nicki Brand (Deborah Harry of the rock band Blondie). They flirt and soon end up back at Max's apartment - where she says porn gets her in the mood, so she looks through Max's collection of videotapes and chooses a tape labeled "Videodrome." Instead of being shocked by what she sees, she's turned on. Soon afterwards, she introduces Max to the wonders of body piercing as a sensual pleasure - as well as the pleasure (?) of a lighted cigarette burning into bare flesh."
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Nowadays drome

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"Cronenberg wondered what might happen if you picked up a strange broadcast, where events possibly illegal were taking place. What would you do? (...) Max Renn (James Woods), witnesses just such a broadcast signal, this time from a satellite station called "Videodrome." He sees a woman being tortured in a red room with clay walls. He sees only a few seconds of the transmission before static overcomes the signal. He doesn't consider the legality of the broadcast or what his ethical responsibility should be having witnessed such a horrific act. He's concerned about learning more: this might be just the sort of thing he's been looking to broadcast on his own cable television station. He knows the broadcast grabbed his attention, and if he's attracted to these extreme images, he assumes other people will be attracted as well - an egocentric attitude that serves as Max Renn's justification for becoming involved in increasingly more extreme and violent forms of sexuality."
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Slit & VCR

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"Rarely has a movie been as prescient about technology (and our response to that technology) as David Cronenberg's Videodrome. Cronenberg envisioned a world where television directly impacted the viewer, even changing the viewer physically so that interaction could be made easier yet. In Videodrome these changes take their most notorious form as a slit that develops in the protagonist's stomach, turning him into a VCR in which videotapes (programming) can be inserted that will directly influence his actions." (daqui)
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Long live the new flesh

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David Cronenberg, Videodrome (1982)
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Ou o advento profético de uma alucinação colectiva.
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quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Incon(torn)áveis minas

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Sais para a noite como quem cuida do enxame nas veias. Dobras cada esquina a mando do estrépito no peito. Andas por onde nada te espera. Nos olhos baços a distorção de luzes. Pequenas bolsas de calor, animadas vozes, jorram dos bares: minas no teu caminho gelado. Um só pé em falso e explodes.
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A má moeda

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A ludicidade, o hedonismo têm duas caras. Uma: prazer superficial, ilusório. A outra: fastio perene. Óbolo de acesso a lado nenhum, travessia pela travessia, tão só isso.
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Ódio

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Hidra de mil cabeças que tudo engole. Enfia-se nas camadas mais internas, onde há vísceras. Escalados para a ruminação, órgãos abandonam os postos – e não passam de açougues.
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segunda-feira, fevereiro 11, 2008

O amor de Orfeu e as Ménades

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Emile Levy, Orpheus Slain By The Thracian Women (c.1895)
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Saudade órfica, aquela que nos leva a passar por cima dos medos e descer aos infernos só para tentar re(a)ver a amada. V
isceral ao ponto de desejar ténue essa cortina de ferro, perene desde o início dos tempos, sem retorno, interposta entre mundos em tudo antagónicos. Por impossibilidade de a franquear recria-se o inferno na terra com todos os seus suplícios. A dor não olha a meios sobre até onde se está disposto a ir, just for love. Orfeu e Eurídice, protagonistas do que pode ser lido como metáfora sobre a inexorabilidade da morte, uma reflexão sobre a viuvez, sobre o amor além-vida, além-morte. No mito como no real a morte dita as suas regras. É tudo uma questão de descida caso se baixem os braços, caso se baixem as armas. E aqui entram precisamente as Ménades (insinuaram-se a Orfeu, uma e outra vez, e este teimava em ignorá-las; despeitadas, desprezadas, a sede de vingança só logrou saciar-se ao despedaçaram-lhe o corpo). Funcionam assim como símbolo de forças reactivas que se insurgem contra o beco sem saída em que o viúvo se deixa atolar, contra a apatia e a indiferença que lhe limitam a existência, incapaz de voltar a fruir o que quer que seja. A incapacidade de construir um novo caminho, as oportunidades perdidas são atitudes que se voltam contra o próprio. A actuação das Ménades, enquanto precipitadoras de um destino trágico, reenviam-nos para uma questionável equivalência de escalas temporais: ao fim e ao cabo, qual a diferença entre uma longa vida imersa em tristeza e inércia ou uma vida abrupta e violentamente encurtada tal como sucede no mito? Outras questões se levantam como o respeito pela dor e o sofrimento alheio ou o direito de puxar alguém para a vida, mesmo contra vontade expressa do próprio. As Ménades acabam muito justamente punidas e o amor de Orfeu glorificado para memória póstuma. Mas um amor mais forte que a vida teria sido posto em causa se Orfeu tivesse voltado a amar outra pessoa? Creio no óbvio: a ser assim, se o mito ainda se aguentasse como mito, o que é tudo menos certo, seria indubitavelmente outro.
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quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Melancolia que estranhamente conforta

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Draconian, Where Lovers Mourn (2003)
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Ouço mal acordo. Ouço durante o dia. Durante a noite nem se fala. Ouço ao deitar e acho que até ouço a dormir, em sonhos. Ninguém percebe esta minha fixação. Paixão dir-se-ia. Ou quase ninguém.

Pois bem, é este, na minha humilde e modesta opinião, um álbum de estreia que roça a perfeição. Exagero? A culpa é destes suecos que não o fazem por menos. Gravadas algumas demos, invariavelmente insatisfeitos com os resultados, só avançaram para voos mais altos quando se sentiram com maturidade suficiente para lapidar o diamante que tinham em mãos. E, cada vez mais, é assim que deve ser, que este mundo não está para amadorismos e mostra-se cada vez menos condescendente no que toca a passos em falso (e se à nascença, pior).

O jogo de vozes à la "Beauty and the Beast", mais que um contraponto, é uma díade como as faces de uma moeda atirada ao ar, girando, girando. No geral, as vocalizações guturais de Anders Jacobsson, também poeta (o que até romantiza a aura "Beast"), não caiem nos excessos que em parte tipifica o death metal - o que para mim é ouro sobre azul (poderia dizer o mesmo, mas com cores ligeiramente mais negras). Na voz seráfica de Lisa Johansson, ó riacho de águas cristalinas, encontro a doçura que conforta após a tempestade. Mas não se pense que este é um álbum de cataclismos: estamos sobretudo no domínio do doom. Em face disto, escorrem de cada faixa gotas da mais prostrante melancolia e os riffs de guitarra parecem reinventar a linguagem do lamento. O doom metal, não poucas vezes, é um último abraço aos condenados da vida. Daqueles que se despedem, se apagam ao fundo do túnel e afinal voltam, recriando um ciclo.

Quero ainda salientar (vamos lá etiquetar o post) a rica apropriação de elementos folk, faixas com pontuações e acentuações certeiras de guitarras acústicas, violino e piano; as arrebatadoras distorções nos terrenos do rock progressivo (piscadela de olho aos Opeth?).

Sim, há por aqui muita dor, muita renúncia, renegação, sensação de perda e vazio, amores perdidos, anjos caídos e idos, mas momentos igualmente luminosos que transcendem a palete dos cinzas, as cores do negrume. Melancolia que estranhamente conforta. E sim há conteúdo, há lirismo, poesia para quem se dê ao trabalho de a procurar. Sob a capa da dureza e de uma mais que enganosa aridez fui sendo guiado por entre tesouros e acredito que outros também o poderão ser.
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terça-feira, fevereiro 05, 2008

300 anos (+1)

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Velázquez, Las Meninas (1656)
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Picasso, Las Meninas (1957)
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Contemplar "Las Meninas" destes dois génios espanhóis é quase como piscar os olhos a trezentos anos de História da Arte.
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