quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Uma lenta aprendizagem

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Furtivo como um animal nocturno, absorvo de pupilas dilatadas o silêncio.

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Queria poder riscar um fósforo e dizer que em vida me consumi inteiro, lhe engoli a chama e cuspi a cinza, ao vento.

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Encostado à parede, ao grande pilar da espera, tenho aguardado a voz a autorizar-me: agora sim podes viver!

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Mil braços internos cobertos de chagas: abraços que não pude dar.

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Acordo com a face dormente - resquício de dor revolvida em pleno sono. E da cortina suspira renovada luz.

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Nuvens que me vendam os olhos, mas que por entre as quais lhes advinho o sol.
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terça-feira, fevereiro 27, 2007

Chobre o migo invijibel do Cookie Monster

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No ploglama d' hoje mil e muitos, o miguito do Cookie Monster estava lealmente tliste. É que ele nunca nunca apalechia na tevijão. É que nunca nunca ninguém che lemblava dele. É que ninguém ninguém lhe oflechia bolacha. E logo ele que tanto aplechiava o olhal alegalado do xeu migo Cookie, cand' à xua flente lhe dispunham o platinho de bolacha, qu' ele xeu migo invijibel de bastidoles plepalava. Ele que chorria ante a vorachidade com que xeu migo as devolava. Ele que tante g'stava de vel xeu migo comilão f'liz. Mas a ele nunca nunca ninguém ninguém lh' oflechia bolacha! Não era cajo de se conchidelal um mãos-lalgas, apejal dele nã hejital em dal as que tinha e as que nã tinha. No fundo faji'ó de folma abnegada, sem espelal muit' em tloca. Mas lá está, havia nele também (com' em tod' a gente qu' é gente) uma pontinha puquenina d'ego que g'stava de mimos letlibuídos. Calhou sel este o plechiso dia, em que nã'via folma d'as repôl pó seu miguito Cookie. É xabido que no dal e no nã rechebel há dias axim: em que xojinhos chimplesmente não se conchegue repôl. Bem... o que o miguito fez pa che distlail da tlisteja, foi aploveital a chaída (porque em dias axim é folçoso chail), pa complal umas bolachinha de vedade. Porque as ôtras, as qu'ele dava, era mimos. Mimos, xim, em forma doche. Mas não bolacha. Complou das que vêm em pacotes, xim, dexas qu'estaliçam sob os dentes. Mesmo nã chendo gand cocha, chempe adocham a boquita, que nã send' ixo colia o lisco de amalgal. Daí foi tud
chendo feit' em papa, qu' é pa nã engasgal e deglutir-che como che nada foche. E pol uma vez, bolachinha xó pa ele. Que nem ploglama, nem xeu migo Cookie eram pl'aqui chamad'j...

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segunda-feira, fevereiro 26, 2007

É natural

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Segundo Caeiro, o homem verdadeiro e primitivo (não no sentido retrógrado, claro) é aquele que vê o sol nascer e não lhe atribui significados transcendentes, nem motivos para adulações - "porque isso é natural". Sim, da ordem do natural, o que não deixa de ser motivo de contentamento. Até porque se diz que o que é natural é bom.

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sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Anseios de metamorfose

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E depois dos genes, os cuidados com a saúde, a alimentação sã e equilibrada, o exercício físico, o bem estar holístico, os tratamentos, etc. A respeito disto ocorre-me o primeiro romance de Marie Darieussecq - "Truismes / Estranhos Perfumes" -, no qual a autora disseca, em jeito de perturbadora parábola, a obcessão quase religiosa com a aparência e o culto maníaco da beleza perfeita. Mas por mais que se negue, ninguém escapa a certos anseios. Não poucas vezes desmedidos, como acontece quando se tenta recriar e encaixar num ideal.
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E Deus criou a Mulher

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Michael Bergt, Creation (2002)
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Além do blog que de forma tão eloquente tem versado sobre a matéria, reunindo provas cabais que, sem sombra para dúvidas, atestam da veracidade da teoria criacionista neste preciso ponto, também no filme "Scent of a Woman / Perfume de Mulher", de Martin Brest (1992), se podem encontrar apontamentos interresantes nesse sentido.
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"Women! What can you say ? Who made 'em?
God must have been a fuckin' genius."
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Numa ode à mulher, colocando-a em toda a sua perfeição terrena ao mesmo plano de uma deusa Afrodite, o coronel Frank Slade (Al Pacino) discorre sábia e poeticamente sobre o assunto:
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"The hair --


They say the hair is everything, you know.
Have you ever buried your nose in a mountain of curls...
and just wanted to go to sleep forever?"

"Or lips --

and when they touched,
yours were like... that first swallow of wine...
after you just crossed the desert."
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Fala ainda de algo que tentadora e sugestivamente lhe lembra
secret searchlights, como que focadas e apontadas, em toda a sua carnalidade fremente, na sua direcção. Segue-se a erudita comparação entre a bela pernoca e as greek columns, e é então que revela ao instruendo Charlie Simms (Chris O'Donnell) por que meios se pode alcançar o mais directo dos passport to heaven. Soletra depois com toda a ênfase as duas únicas sílabas, entre todas as demais, que segundo ele valem a pena serem escutadas. Subtraio-me de as revelar, não por falsos pruridos, mas para dar um trabalhinho extra aos eventuais curiosos. A esses digo, meio a sorrir: ide procurar o script!

E, em jeito final, não sem bazófia e paternalismo, do mestre Slade para o instruendo:
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"Are you listening to me, son?

I'm givin' you pearls here."
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Sem me estar a dirigir a Frank Slade ou a indíviduos da mesma estirpe, exaltadores admiráveis da beleza feminina (nunca de mais exaltada): abaixo os mestres e os que neste campo se julgam mais doutos. Abaixo sobretudo os que com interminável lábia parecem querer mover-se numa prova de competição. É que se confundem pérolas - as de carne e osso - com meros objectos de disputa, pobres almas as deles. Além do mais, a terem realmente vindo de Deus, as pérolas, não há cá direito a créditos intermediários. A não ser os dos papás e mamãs, pois claro. E, eventualmente, dos esteticistas e cirurgiões plásticos - santos milagreiros da nossa era, alvos de tão careiras peregrinações. Mas primeiro e acima de tudo os bons genes dos papás e mamãs.
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quarta-feira, fevereiro 21, 2007

The Carnival Is Over

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Schiele, Portrait de Friederike Maria Beer (1914)

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Ajudas-me a escolher um fato que me assente bem? Sabes como é, em tudo na vida o leque de escolhas é vasto e a estroinice quer o seu aparato. Achas que devo poupar nos padrões de cores? A sério que não? És capaz de estar certa, cada cor há-de combinar com o seu dia. E depois disto para que havemos de precisar de outra roupagem? Poremos fim aos resguardos para ocasiões futuras. Será o nosso trabalho de colagem ao corpo. Um tecido nosso, até durarmos. Que achas de irmos os dois descalços? Sim querida, estou-te a convidar. Deixa lá os calos nos pés, não te preocupes com isso... Crescer implica deixar um pouco de si ao longo dos trilhos, certo? Como gatinhar de novo, com esse prazer da descoberta. Sim, quase isso. Mas agora com o instinto do medo domesticado. Que certeza tenho eu de em vez disso seguirmos cegos e às apalpadelas? Dedos dos pés crispados? Certezas nenhumas, querida. Mas não te seduz a ideia de seguir de perto o longo cortejo de máscaras, e, oportunamente tomar o desvio certo? Nada está planeado, bem sei. Mas estou ansioso. Confiante, até, em como hão-de surgir pistas reveladoras do roteiro alternativo. Eu sei, eu sei. Não te rias. Que queres, é perfeitamente humano querer escapar à normalidade dos formatos. Por onde gostaria eu de começar? Olha, talvez pela via que nos conduzisse à autenticidade do riso. Concordas? Menos máscaras, também. Mas porque dizes que já não é possível ser-se ingénuo e estampá-lo com pinturas no rosto? Achas mesmo? Inocência a lado nenhum leva? Talvez. Pois, é a lei. Irmos de perda em perda até obtermos outros ganhos. De acordo. E nisto também?: mascaradas ocultam mais, camadas de tinta deixam um mínimo de expressão... Vá, não pensemos mais nisso... Pintas-me o rosto, que eu ajudo a colorir o teu. Pode ser?
Não te cansa um pouco todo este frenesim, esta excitação geral, o facto de andarem todos a repetir o mesmo: que estes dias prometem? Que dizes? Mais promessas de uma mão cheia de nada?... Fala-se de fantasias que se entrelaçam as mãos, que descem as ruas aos pares. Que se faz amor nos becos, nos jardins. Que o mundo se transfigura, convidativo. Que o inverno, à conta de palpitações, deixa de o ser. Acreditas mesmo que as unhas, nestes dias em particular, se enterram mais profundamente nas costas? Como se não houvesse amanhã, dizem... Acreditas? Desejosas de arrecadar a sua porção de carne. Lá está, a prova justaposta à posse. Viver, será isso? Em termos de plenitude... quero eu dizer. Os sentidos focados no instante, em intensidade inigualável, como não é possível em nenhuma outra ocasião. Será isso? O despertar da nudez, para além da nudez? E não falo apenas de corpos. Talvez, mas a meu ver tudo isso se resguarda demasiado depressa. Como num sonho. Depende dos casos, mas parece-me que até as feições se esbatem... Não aguentam a luz do dia.
Não sabes se gostas do fortuito que isto implica... Pois, também eu não. Quem facilmente cria amarras, precisa de algo mais. Ainda assim, estou certo que a maioria sonha em prolongar o efeito, que não se satisfaz com o efémero. Mas também aqui entra a lei: vence o efémero... Não é? Um pouco como a lotaria, dizes e bem. Joga-se e automaticamente se descarta a possibilidade da vitória. Sabe-se apenas que estar entre os felizes contemplados é probabilisticamente impossível. E chamamos palermas aos que, continuando a jogar, nem por isso se lhes abala a fé. Somos uns desiludidos? Menos iludidos, talvez. Acho que tocaste no ponto. Até porque, repara só: no dia seguinte sai-se à rua e noticiam-se os fatos a ostentarem rasgões? Não me parece. Mas se calhar, em vez disso, vêem-se mais fatos engomados, como se nada se tivesse passado. A esponja que nos afiança o regresso à normalidade. Não odeias a sensação final de não sobrar sequer um vestígio palpável? O efeito perverso nisto é a possibilidade da tal bola de neve cumulativa. Um encontro que se consome nesse instante, apela sempre à demanda por mais. Daí que eu diga que indiscutível é a voracidade desses instantes acabar por se tornar num fim em si, insaciável. Conheces pessoas que aligeiram as rotinas, o cansaço dos dias, que justificam a sua continuidade com os raros momentos de felicidade em encontros assim? Também eu conheço. Alguns confiam as suas existências, como quem vê nisso a menor das incertezas. Se os invejo? Sabes como é, o despertar de uma ilusão nunca é fácil, mesmo que mergulhes nela com a convicção de que não passa disso. A folia de saltar de ilusão em ilusão não te parece demasiado carnavalesca? Também gosto de descobrir, claro... A novidade, sim, um elixir. Mas e depois? É-se feliz fazendo da vida um ciclo entre carnavais e rotinas?
Conversamos, mas olha para nós... À medida que os traços de tinta ganham vida e expressão nos nossos rostos, não te assalta a sensação de que as palavras que vimos trocando, no fundo no fundo, não têm feito outra coisa senão fugir à verdade? Porquê recear o que se insinua dentro de nós e calamos? Posso fazer-te uma pergunta e respondes-me com sinceridade? O que persegues no cortejo próximo, que não persuigas nos outros dias, nos dias ditos normais? A irrealidade? O zénite? O olhar sem barreiras? O gesto de quem, com garras, se agarra ao presente? A expressão pura por via da dança desenfreada? Os mais conspurcados entre os desejos, finalmente saciados? Está bem, eu calo-me. Tens razão. Acho melhor irmos calçados...

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domingo, fevereiro 18, 2007

Vitríolo

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Francis Bacon, Self-Portrait (1971)

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Edgar era com frequência acometido por pesadelos. Raras vezes, ao despertar, se via capaz de os reconstituir na íntegra, ou deles extrair um pingo de coerência, ou uma fímbria de sentido. Os contornos sinistros, os enredos caóticos interpelavam-no do interior de uma enorme caixa de ressonância. O grau de perturbação que imprimiam ao seu espírito, fazia ele por dissipar com música relaxante logo pela manhã e com a súbita invasão de luz no lento abrir dos estores. Porém, quais miasmas trazidos de quando em quando por ventos indesejáveis, nem por isso se dissipavam ao longo do dia. Assediavam-no precisamente naqueles instantes em que se tem um mínimo de tempo para nós, nas pausas para respirar.

Num deles era-lhe ordenado que despejasse sobre si um frasco de vitríolo. Para seu assombro cumpria a ordem sem hesitar, convencido de que daí adviria uma inusitada felicidade. Observava com estranheza o modo como a pele do seu corpo ia amolecendo. A certa altura, dir-se-ia um gelado exposto ao calor de uma fornalha, derretendo velozmente. O processo era-lhe completamente indolor como se se observasse de fora. Olhava para os braços, para as pernas, como o clínico ávido de desvendar os mistérios da decomposição. Ao mesmo tempo ocorria-lhe a ideia de ter abandonado livremente o seu corpo, para que a experiência seguisse o seu curso, sem mais interferência sua. Era então que dava por si entre a numerosa multidão que assistia com indisfarçável deleite ao sádico espectáculo. Do lugar em que se encontrava, numa das extremidades de um palanque, tinha agora uma outra percepção das coisas. Era-lhe agora impossível a anterior passividade e agonizava visceralmente a cada grito desse seu antigo corpo. Este, estoicamente, mantinha-se ainda em pé, em total imobilidade, sem sequer esbracejar, no centro do que parecia ser um estrado improvisado. Aquele corpo, já não lhe pertencendo, acabava de criar por via da dor a ligação afectiva que jamais em qualquer outra ocasião nutrira por ele. Em seu redor, a multidão, ululante, aplaudia estrepitosamente de cada vez que um pedaço de carne se destacava e tombava. O mundo na sua empedernida rota para a loucura, desde a implementação dos regimes de catarse pública.

Quando o corpo acabava reduzido a uma poça, vinham-lhe parar misteriosamente às mãos uma vassoura e os restantes utensílios de limpeza. Os olhares enfáticos de um senhor, que se prestava a fazer uma breve introdução ao número seguinte, sugeriam que ele devia apressar-se a limpar o estrado, no sentido de se evitarem atrasos na programação. Parecia não ter outro remédio senão levantar-se do lugar e dirigir-se ao estrado. Alguns espectadores, mais impacientes com a demora, iam-lhe atirando os mais diversos objectos, redobrando-lhe assim a carga de trabalho.

No final, serenados os ânimos, davam todos por bem empregues o tempo e o dinheiro dispendidos. Não se demoravam muito por ali. Despediam-se até uma próxima vez, abraçando-se como velhos camaradas que verdadeiramente se estimam, unidos na partilha de algo excepcional, maior que as suas vidas. Uns regressavam com bonomia a casa, dando pequenos pulos no ar ou mãos nos bolsos a remoer os trocos. Outros sentenciavam que agora sim a noite poderia enfim começar e dirigiam-se passo a passo aos cafés e bares das redondezas. Aí bebiam e brindavam à fortuna. Faziam votos de que as sessões não acabassem nunca. Quanto a Edgar, o varredor, nem uma palavra; dele nada mais se soube.
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sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Engavetar

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Spencer Selby

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"A recordação é uma traição à natureza"
"O que foi não é nada, e lembrar é não ver"
Alberto Caeiro
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A recordação é uma construção nossa, um conjunto de sensações e percepções que evocamos artificialmente. É depender da imaginação para recriar as condições e sensações originais daquilo que nos tocou. Assim, a recordação não podia estar mais nos antípodas das sensações primárias, pois nela fundimos uma outra série de vivências e acontecimentos que deturpam o que verdadeiramente e em primeira mão sentimos.
Artifício parecido ao de arrumar gavetas. Reviramos primeiro o seu conteúdo, para depois dispormos as coisas de forma ordenada e mais ao nosso agrado. Recordar é construir um nicho de prazer com a imaterialidade do passado. É querer de novo tangível as sensações primárias, experienciá-las na origem. É não querer saber que lhes traímos a força utilizando iluminação artificial.
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terça-feira, fevereiro 13, 2007

Timbre

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Os dias passam, mas não apagam a agradável surpresa de um novo timbre de voz. Como se andasse já há algum tempo a piscar o olho a um cd, demorando o olhar nas ilustrações da capa, nos bonitos padrões do seu inlay, folheando o livrete, imaginando sonoridades e melodias ao prestar atenção à profundidade das letras, mas sem que ainda tivesse escutado um único som. E no fim, ouvidos atentos, colados ao telemóvel, perceber que todos os acordes se conjugam.
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segunda-feira, fevereiro 12, 2007

«Gabrielle» (2005)

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No filme "Gabrielle" de Patrice Chéreau (adaptado do conto "The Return" de Joseph Conrad), Gabrielle (interpretado por uma das grandes actrizes contemporâneas: Isabelle Huppert) regressava a casa, voltando de novo para o marido, depois de lhe ter deixado um bilhete, no qual em poucas linhas lhe dizia que se ia embora para ir viver com outro homem. Caía assim por terra, de forma abrupta, todo o monólogo inicial de Jean Hervey (Pascal Greggory) - o marido -, sobre a felicidade conjugal e a devoção de que ele julgava ser alvo. E o corte-e-montagem e a sucessão de planos são taxativos a dar conta desse ponto de ruptura. É o ponto final na paz que, naquela casa, apenas vinha sendo mantida artificialmente. Até esse ponto sem retorno, a situação até que não desagradava ao marido. Convivia bem com as rotinas de uma vida sem sobressaltos, sem chama. O drama é que ele parecia não ter noção da extensão do problema, do fosso cavado entre ambos: o que estava bem para ele podia não estar bem para ela. Três horas e meia, apenas, foi quanto ela se ausentou. Envolta em véus, negros, numa solenidade e tensão de cortar à faca, como se nesse acto estivesse a cumprir-se um luto e uma espécie de ressureição/aparição, ela entrava no escritório e sentava-se, imperturbavelmente, ante o olhar incrédulo de Jean Hervey. Assombroso pedaço de filme que não páro de rebobinar mentalmente.
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É um filme de revelações e desabafos, de acariações. A intimidade lentamente vista à lupa, exposta de par a par.
De súbito, vem à tona tudo quanto as aparências e a civilidade faziam por ocultar e, até certo ponto, menosprezar. A uma das empregadas, Gabrielle chega mesmo a revelar que o seu segundo momento de maior felicidade correspondeu precisamente à sua saída de casa - essa suprema afirmação de liberdade, de desprendimento quer em relação ao conforto de uma vida de classe média-alta, quer aos afectos alheios (neste caso, os do marido). Interrogamo-nos de imediato sobre a rotina e a infelicidade de uma vida matrimonial capaz de suscitar uma tal afirmação.
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O que ao início nos confunde é o facto de, apesar de tudo, e
la ter optado pelo regresso - a última resignação a uma vida toda ela oca e resignada. Diz-nos que não podia viver segundo os padrões do amante, um editor boémio, desconstructor irónico e desencantado do «que é» e da suposta realidade. Regressou porque afinal o que perseguia era um sonho e o que nesses terrenos se edifica costuma mais tarde ou mais cedo ressarcir-se da fragilidade da edificação. Mas faz-nos compreender que não podia negar-se à possibilidade de tentar agarrá-lo. Era algo que estava dentro dela e lhe pedia para ser vivido. Regressou porque em última instância também confiava que o marido já não a amava e que, portanto, a receberia pronto a esquecer o incidente. Mas enganou-se. Diante dos nossos olhos vamos assistindo de forma brilhante à profunda transformação que se dá em Jean. Vemo-lo afundar progressivamente, crispar-se amargurado, torturado, relutante em aceitar as evidências, querendo forçar o presente a voltar para trás, para o que era dantes. Da calma e segurança do início, naturalmente, que nem vestígios.
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Gabrielle regressa então disposta a esquecer o amor, a miragem do amor - a última das ilusões perdidas - e a levar a vida pacata e insípida de sempre, uma vida pontuada por fastidiosos serões em sociedade, nos quais se actualizam os assuntos mundanos e a indispensável dose de coscuvilhice. Mas um episódio desta natureza não podia resistir sem um profundo volte-face: agora
era o marido, desvairado de dor, que já não poderia tolerar a certeza de uma vida sem amor.
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sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Renúncia

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Não ao reverso e seu anverso.
Não à cara e à coroa.
A vida enferma sob o domínio dos pólos,
rende-se ao jugo do trivial. Na massa informe
das aparências, esbate-se tudo quanto é diferença

e os monólitos erguem-se dos lugares comuns.
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19/7/2003
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P.S. . Podia dedicar estas palavras ao que, nos últimos tempos, se vem assistindo um pouco de norte a sul do país. Podia dedicá-las, por exemplo, a algumas tomadas de posição, que se têm verificado na discussão em torno da despenalização do aborto. Pois podia. Mas não só, claro. Acho que pode ser extensível a tudo quanto enverede pelo radicalismo, pelo valer tudo sem que se olhe a meios.
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quinta-feira, fevereiro 08, 2007

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O verdadeiro instante em que cai a máscara? Desejavelmente e esperançadamente, sim. No que é a essência do encontro.
Fechar os olhos como quem se recusa a aceitar as evidências, como quem foge introspectivamente da aridez do deserto, daquele que nos circunda dia após dia e lentamente nos reduz em montículos grãos de carência. Buscar refúgio na memória. Relembrar a última vez que os lábios se tocaram e revivê-lo sob a máscara dessa lembrança.
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Cerimonial de quê?

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O estranho fio de som proviniente do órgão, às mãos de Nick Nightingale, e que se suspende como num único compasso de tempo, esbarando na indefinição cénica. As pancadas sinistras, introdutórias pancadas de Moliére. Uma voz oriunda de outro mundo. Nightingale, de olhos vendados e de costas voltadas para a audiência, sem fazer grande ideia da natureza do cerimonial. Eyes wide shut, mas certamente sensível aos sons que o rodeiam enquanto toca. Leves suspeitas que se vão somando e perdendo o freio a irreprimíveis fantasias. A câmara de Kubrick incisiva no cortejo de máscaras. Conjugação arrepiante de som e imagem. Encontro imediato com a pura essência cinematográfica. Antes de se perceber do que se trata, mil possibilidades nos ocorrem. Queremos ler na impassibilidade das máscaras a resposta certa. Mas elas negam-se e reprovam-nos com o seu esgar qualquer tentativa de advinharmos o que quer que seja antecipadamente. Nisso, mais uma vez, a mestria de Kubrick, a conduzir-nos literalmente a seu bel-prazer.
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"Masked Ball", da autoria de Jocelyn Pook
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Velho cliché dizer que até certo ponto somos todos máscaras e (des-)construcções... E também a vida em sociedade nos obriga a sentir na pele, quase todos os dias, que estamos rodeados de máscaras e que parece não haver outro remédio senão conviver com elas. Felizmente existem os tais momentos em que elas caiem. Instantes fugazes e por isso venerados. Persegui-los como ideal de vida é quase como um trabalho sociológico de olhar para além das fachadas.
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terça-feira, fevereiro 06, 2007

Todd Field, take # 2

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Todd Field, Little Children / Pecados Íntimos (2006)
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E pelo que tenho lido, o seu segundo filme além de prometer, parece estar a cumprir e a superar expectativas... Há gente com sorte e já o tenha visto. Por acaso, não me queres falar um pouco sobre ele, hein?
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A «pass» [2]

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Só para mostrar, ou melhor, «fotogramar» o tal momento...
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"Eyes Wide Shut" de Stanley Kubrick
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Nesta cena fico literalmente suspenso de cada palavra, de cada hesitação, de cada nuance que transparece (ou do que se oculta e toma proporções à medida do labor da nossa imaginação) no diálogo entre Nick (Todd Field) e Bill (Tom Cruise). Mistério e suspense (isto soa a sinopse de revista popularucha, mas pronto, siga...) doseado com mestria por esse grande cineasta que foi (e é e será sempre) Stanley Kubrick. Eu «fotogramei» e vocês?
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A «pass»

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Espanto-me com coisa pouca, eu sei. Mas descobri há dias, com algum espanto (lá está), que o Todd Field, realizador do magnífico "In The Bedroom / Vidas Privadas" (2001), fez parte do elenco de actores do "Eyes Wide Shut / De Olhos Bem Fechados" de Stanley Kubrick (1999). Lembram-se do pianista Nick Nightingale, colega de curso do Dr. 'Bill' Harford (Tom Cruise), que a dado momento lhe revela onde em determinadas noites actua (de olhos vendados e de costas para o «cerimonial» em curso)? Lembram-se dele? Pois bem, esse é o senhor Todd Field. Tal como à personagem do Tom Cruise, senti ontem ao ver o "Vidas Privadas" que o senhor Todd me revelava a password de entrada a um sítio secreto. Desta feita, a zonas obscuras da alma humana - e por isso, uma pass sem contornos claros, nem definidos. No "Eyes Wide Shut", Fidelio** era a pass. (Quer-se dizer, não havia pass, mas assim éramos levados a crer...). No "Vidas Privadas" ainda estou a tentar decifrá-la. Uma que resuma numa só palavra um extenso leque de contradições humanas: paixão, ciúme (doentio), distância, sonhos (frustrados; abruptamente interrompidos), ódio cego, raiva, impotência, silêncio, saudade, mágoa, a imensa dor da perda, a incapacidade de perdoar, a sede de vingança, os dilemas de consciência, a busca pela pacificação interior e a lenta recuperação da fé no life must go on.
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** Seguramente que na escolha da pass, os argumentistas do "Eyes Wide Shut" (Kubrick e Frederic Raphael) se inspiraram no título da única ópera de Beethoven e na sua personagem Leonore - que se mascara como guarda, adopta o nome Fidelio e se infiltra na prisão para resgatar o marido. Há nisto um evidente piscar de olhos à situação de infiltrado/mascarado do Dr. Bill Harford no seio daquela sociedade secreta.

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Post daltónico

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Em vez de quatro somos três (e substitua-se um menino por uma menina). Mas, segundo a xerife cá da casa, não menos terríveis que os irmãos Dalton. Constatação válida para todos os terroristas de palmo e meio, não é verdade? Verdade. Graúdos que agora somos, acho que a xerife ainda nos vê não de forma muito diferente. Porém, nada a ver com daltonismo. Até porque considero que ainda dou motivos de sobra para isso (e tu? também dás ou portas-te bem?). Lucky ou desperate xerife? E pergunto isto a sorrir.
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segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Efeméride

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A 5 de Fevereiro de 1919, David W. Griffith, Mary Pickford, Charles Chaplin e Douglas Fairbanks (da esquerda para a direita na foto) fundaram a United Artists, estúdio que tinha por base do seu nascimento privilegiar a visão de artistas e criadores nas decisões respeitantes à produção. Davam assim, à indústria cinematográfica, um claro sinal de pluralidade na forma de fazer cinema, que não passasse exclusivamente por uma lógica de cifrões. E não é por acaso que figuram entre os fundadores senhores como Griffith e Chaplin, pioneiros "sagrados" da sétima arte, inauguradores mitológicos de uma nova era.
Só para dar uma pequena ideia, devemos à chancela da U.A. títulos como estes, que falam por si:
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"Tempos Modernos" de Charles Chaplin (1936)

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"Quanto Mais Quente Melhor" de Billy Wilder (1959)
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"The Graduate / A Primeira Noite" de Mike Nichols (1967)
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"O Cowboy da Meia-Noite" de John Schlesinger (1969)
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E obrigo-me a parar por aqui. É que são tantas as verdadeiras pérolas que sairam daqueles estúdios... Em jeito de retribuição da dívida que sinto ter para com a U.A., aqui vai pois então este mini-post-efeméride.
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domingo, fevereiro 04, 2007

Euforia perpétua

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Alberto Caeiro é incapaz de exaltar as coisas para além do que elas são, ao contrário dos poetas que são muito propensos a êxtases e celebrações. De Caeiro extrapolo para «o agora». É que nunca houve como nos dias de hoje tamanha disseminação e fruição da arte poética. Pergunto-me então: vivemos numa sociedade virada para o êxtase? Que se regala a ver coisas para além das coisas e que nesse acto se celebra? Uma catarse globalizada deste real por vezes tão prosaico? Isto abriu-me o apetite para procurar de Pascal Bruckner, escritor e filósofo francês, o livro certeiramente intitulado de "Euforia Perpétua". Um título que diz muito das aspirações de vida que se generalizaram nos nossos tempos.
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sábado, fevereiro 03, 2007

Não pensar

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Para Alberto Caeiro, pensar é ficar triste e às escuras, «só» com os pensamentos. Em parte por isso e também porque "nada pensa nada", Caeiro acha natural que não se pense - e recrimina-se quando se apercebe que por distracção se entrega a certas veleidades do pensar.
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Farewell


Já de cama desembrulhada, por companhia uma almofada e uma pilha de remédios para os ouvidos e para a alma (grande invenção, essa dos dois em um), resta-me desejar a todos (já agora incluo-me também): sonhos LSD com vórtices e espirais, cores quentes que se mesclam, objectos e figuras que se distorcem e tudo o mais que anestesie...