A «pass»
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.Espanto-me com coisa pouca, eu sei. Mas descobri há dias, com algum espanto (lá está), que o Todd Field, realizador do magnífico "In The Bedroom / Vidas Privadas" (2001), fez parte do elenco de actores do "Eyes Wide Shut / De Olhos Bem Fechados" de Stanley Kubrick (1999). Lembram-se do pianista Nick Nightingale, colega de curso do Dr. 'Bill' Harford (Tom Cruise), que a dado momento lhe revela onde em determinadas noites actua (de olhos vendados e de costas para o «cerimonial» em curso)? Lembram-se dele? Pois bem, esse é o senhor Todd Field. Tal como à personagem do Tom Cruise, senti ontem ao ver o "Vidas Privadas" que o senhor Todd me revelava a password de entrada a um sítio secreto. Desta feita, a zonas obscuras da alma humana - e por isso, uma pass sem contornos claros, nem definidos. No "Eyes Wide Shut", Fidelio** era a pass. (Quer-se dizer, não havia pass, mas assim éramos levados a crer...). No "Vidas Privadas" ainda estou a tentar decifrá-la. Uma que resuma numa só palavra um extenso leque de contradições humanas: paixão, ciúme (doentio), distância, sonhos (frustrados; abruptamente interrompidos), ódio cego, raiva, impotência, silêncio, saudade, mágoa, a imensa dor da perda, a incapacidade de perdoar, a sede de vingança, os dilemas de consciência, a busca pela pacificação interior e a lenta recuperação da fé no life must go on..** Seguramente que na escolha da pass, os argumentistas do "Eyes Wide Shut" (Kubrick e Frederic Raphael) se inspiraram no título da única ópera de Beethoven e na sua personagem Leonore - que se mascara como guarda, adopta o nome Fidelio e se infiltra na prisão para resgatar o marido. Há nisto um evidente piscar de olhos à situação de infiltrado/mascarado do Dr. Bill Harford no seio daquela sociedade secreta.
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2 Comentários:
E é extraordinário ver como se cumpre a adaptaçao da 'Traumnovelle' de Arthur Schnitzler. Lendo o livro depois do filme (que foi o meu caso) vemos claramente que o fio condutor da história é respeitado e nao serve apenas como 'base'. O que difere, e isso é o mais interessante, é a modernidade dos dois tempos da narrativa; o conteúdo psicológico (e a crítica à decadência moral e social) mantém-se.
Creio que no livro a 'pass' era 'Denmark'.
abraço
Motivo de grande alegria ter um comentário teu no meu blog.
Também li o livro depois de ter visto o filme. Kubrick, neste aspecto, também deu o seu contributo ao 'resgatar' da quase semi-obscuridade a obra do escritor austríaco. Uma obra com pouco mais de oitenta anos e que ainda se aguenta muito bem. O ciúme enquanto elemento detonador, quase desculpa para resvalar num certo mundo amoral (no que isso tem de relativo...).
Acho que para fazer uma certa ideia (correndo o risco de enviesada e superficial, mas ainda assim prossigo) do universo mental (e não só, claro) do Arthur Schnitzler, aproveito este espaço para transcrever da wikipedia o seguinte:
"In addition to his plays and fiction, Schnitzler meticulously kept a diary from the age of 17 until two days before his death, of a brain hemorrhage in Vienna. The manuscript, which runs to almost 8,000 pages, is most notable for Schnitzler's casual descriptions of sexual conquests — he was often in relationships with several women at once, and for a period of some years he kept a record of every orgasm. Collections of Schnitzler's letters have also been published."
Quanto à 'pass', no livro, julgo que sim, que era essa. É só uma questão de ir confirmar. Mas hoje já não, que o sono já não me deixa e não tenho aqui o livro à mão.
Abraço.
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