domingo, setembro 30, 2007
quarta-feira, setembro 19, 2007
Sinal horizonte
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David Ligare, Penélope
.O tempo passa, deixa suspensas: palavras, intenções. Dar sinal exige-nos um código de improvável ajuste e o fumo não é nosso domínio. Ser pegada no areal é coisa de peregrino arribando em extensa ilha. Nem espuma de aproximação, que essa evita-nos os pés. Baixar âncora e recolhê-la de seguida: também aqui não se está bem. Distância, solidão: elementos que se entranham, em qualquer parte. Sobra a memória de um horizonte, a perder de vista. Um fio de espera que por instinto contemplamos: de tão virgem, o globo continua desafiando. Frente ao olhar, cai e levanta-se, sem interrupção, um mar de afectos, ora calmo, ora revolto, cuja única razão de ser é um eterno deslizar por entre dedos. Crer que se pode suster uma porção e sentir o todo é a intuição de qualquer banhista. Fruição e partilha: aspergi-la à nossa volta como maresia. Que nos dilate os pulmões e aos da nossa estima. Vacila a forma de o tornar possível: parece não fazer sentido, o código. Parece nem existir. Sem cartilha, entregues à dúvida e ao improviso, ao fundado receio das sensações - corpúsculos de éter na praia. Estendidos na toalha, no limiar da volatilização, quase sintonia com a seiva animal. Livres, rebeldes, arde o sol sobre nós. Arde como só as ilusões: apagam-se e renovam-se todos os dias. Magma por demais longínquo, mas sempre latente em cada poro. No sussurro da respiração a voz sábia, o valioso ensinamento de um novo inspirar. Inspirar, expirar e inspirar de novo..
terça-feira, setembro 18, 2007
Antas
.Calcetas as ruas, firme e alheado no cima dessas antas. Algumas penas no ventre, é quanto levas. Oscilam ao vento. Para teu azar deste em avestruz. Sem ginástica dorsal para enterrares a cabeça nos canteiros; com visão periférica suficientemente apurada. Está certo: é tramado. Mas não é o fim do mundo. Estranhos aproximam-se de ti, acompanham-te o passo. Ficas desconfiado. Não tentam desequilibrar-te, não te querem mal, nem sequer esperam o momento de te ver tombar. O teu instinto é uma parabólica fora de prazo, que continua a dar sinal: falseado. A única questão é de falta de sensibilidade: tua. Então não vês que atrapalhas um pouco o skyline? Vá, desce daí e sintoniza um canal de jeito..
segunda-feira, setembro 17, 2007
Escaleno
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Steve Kloves, The Fabulous Baker Boys (1989)
.Susie Diamond, a inevitável escolha para o vértice deste triângulo escaleno. Um filme com momentos fulgurantes: Susie cantando deitada sobre o piano, uma figuração da mais pura sensualidade; a distância estudada, no limite da dissimulação, das evasivas, entre Susie e Jack Baker (Jeff Bridges), o oculto receio de cair nas garras e dependência do outro, a secreta curiosidade pelos ínfimos objectos: perfumes, artigos de barbear; no rosto resignado, impassível, de Jack, a frustração de todo um talento desbaratado anos a fio em actuações menores; o clube de jazz enquanto espaço de exorcismo, o templo onde credos não se vendem nem se traiem, o reencontro com a verdadeira natureza da sua arte. Há quem, com as devidas ressalvas, o qualifique como um Jules et Jim à americana. Hoje, às 21:00 no Lusomundo Gallery, podem tirar teimas.
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Um acto de vontade
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.O Joelho de Claire e o encanto das angulosidades. Jérôme, na impossibilidade do todo, sublima na carícia o gesto saciador. O acto que maior dose de coragem de si exigiu, confessa. Ou como também diz, não sem pretensiosismo, o triunfo da "vontade pura". Expressão ambígua, de dupla via, entre consumação última de uma acção e o resguardado teor das intenções. A lembrar-me o que já o casto Schopenhauer dizia a propósito do mundo e suas representações: no fundo, o que alicerça tudo isto e nos faz andar não é nada mais nada menos que a vontade (leia-se desejo)..
Não eu, apesar das rimas
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Amiúde exasperava-se com algumas das tiradas insólitas do seu amigo. Havia uma em particular que a deixava em estado de ebulição: se ela pronunciasse uma palavra terminada em «ão», ele de imediato emparelhava-lhe um despropositado «Napoleão». Não em tributo ao homem e aos seus feitos, mas movido pelo jogo infantil da rima. E o facto de ela gostar de poesia só complicava a situação.
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domingo, setembro 16, 2007
Das Parábolas
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Muitos se queixam de que as palavras dos sábios frequentemente são apenas parábolas, mas sem utilidade para a nossa vida do dia a dia, que é, afinal, a única que temos. Quando o sábio diz: «Passa para o outro lado», não quer dizer que devemos ir para a outra margem, coisa que sempre poderíamos fazer, se o resultado do caminho valesse a pena. Refere-se, sim, a um lendário outro lado, a qualquer coisa que não conhecemos, que nem ele próprio consegue definir da forma mais exacta, e que por isso não nos serve de nada neste mundo. Todas essas parábolas querem dizer, no fundo, que o inexplicável é inexplicável, e isso já nós sabíamos. Mas aquilo que nos dá que fazer todos os dias são outras coisas.
Ao que alguém disse: «Porquê toda essa resistência? Se vos deixásseis guiar pelas parábolas, transformar-vos-íeis vós próprios em parábolas e ficaríeis livres das canseiras diárias.»
E um outro respondeu: «Aposto que também isso é uma parábola.»
O primeiro: «Ganhaste.»
O segundo: «Sim, mas infelizmente só na parábola.»
O primeiro: «Não, na realidade. Na parábola perdeste.»
.Franz Kafka in "Parábolas e Fragmentos", p.27
(tradução de João Barrento)
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Ao que alguém disse: «Porquê toda essa resistência? Se vos deixásseis guiar pelas parábolas, transformar-vos-íeis vós próprios em parábolas e ficaríeis livres das canseiras diárias.»
E um outro respondeu: «Aposto que também isso é uma parábola.»
O primeiro: «Ganhaste.»
O segundo: «Sim, mas infelizmente só na parábola.»
O primeiro: «Não, na realidade. Na parábola perdeste.»
.Franz Kafka in "Parábolas e Fragmentos", p.27
(tradução de João Barrento)
O artífice, o monstro
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Inventara um boneco a que falhara em dar nome. A criatura ia-se gerando lentamente nas suas mãos sem que nome algum lhe assentasse bem. Sempre visto como um projecto menor, a obra voltou-se contra o criador. Nos rodapés dizia-se que um certo Chucky o perseguira até à morte. Acabou a imprensa por baptizá-lo.
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segunda-feira, setembro 10, 2007
A seu tempo
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A luz muda ao longo do dia. Encolhe e alonga as sombras. A seu tempo, há-de chegar a todo o lado. Não só a esta, mas a todas as casas.
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Haran é também Lisboa
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Em Lisboetas de Sérgio Tréfaut, há um episódio de ressonâncias bíblicas. O imigrante, o refugiado, tem em Jacob o seu arquétipo. Foge em busca de segurança. Chega a Haran e, junto ao poço onde ela vinha abastecer-se de água, conhece Raquel; apaixona-se por ela. Algum tempo depois, dirige-se a Labão a pedir a mão da filha. Este só a concede mediante um acordo: antes de mais, ter de cumprir sete anos ao seu serviço. Mas Labão (símbolo do patrão pouco escrupuloso) nunca tencionou cumprir a sua parte. Dar-lhe-ia, sim, Leia, a filha mais velha, escudando-se na tradição de caber à primogénita casar-se primeiro. É a sina do estrangeiro não familiarizado com os costumes da terra que o acolhe. Por essas Haran fora: "trabalham muito e são enganados". Ainda assim, no texto bíblico, as linhas da história lá se concertam, o que talvez justifique a esperança de muitos.
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sábado, setembro 08, 2007
domingo, setembro 02, 2007
Sobre os limites
.João Lopes, Os Filmes Românticos estão a desaparecer?, no DN de ontem:
«Claro que ninguém ignora que os tempos estão difíceis para o romantismo. Afinal de contas, a generalização do "liberalismo" sexual da Internet parece ter superado todas as barreiras tradicionais, culturais e morais. Esta é uma conjuntura violentamente anti-romântica que o crítico Adam Simon, citado num artigo de The Sunday Times (19 de Agosto), resume de forma exemplar: "Numa cultura em que se pode dizer e fazer tudo, fazer amor com tudo, casar e divorciar-se seja de quem for e depois recomeçar tudo outra vez, não pode haver romance porque o romance é sobre os limites."».
«Claro que ninguém ignora que os tempos estão difíceis para o romantismo. Afinal de contas, a generalização do "liberalismo" sexual da Internet parece ter superado todas as barreiras tradicionais, culturais e morais. Esta é uma conjuntura violentamente anti-romântica que o crítico Adam Simon, citado num artigo de The Sunday Times (19 de Agosto), resume de forma exemplar: "Numa cultura em que se pode dizer e fazer tudo, fazer amor com tudo, casar e divorciar-se seja de quem for e depois recomeçar tudo outra vez, não pode haver romance porque o romance é sobre os limites."».