quinta-feira, janeiro 31, 2008
terça-feira, janeiro 29, 2008
Os (en)cantos da sereia
Esta música dos Handsome Boy Modeling School, "I've Been Thinking", à qual Chan Marshall (aka Cat Power), mais do que emprestar a voz, irresistível voz, dá alma, corpo, pulsão, tem acompanhado os meus últimos dias como o canto das sereias acompanhavam os marinheiros nos seus trabalhos diários em alto mar: tentando-os a largar tudo e a mergulhar para alcançá-las. Ao contrário de Ulisses, e bem menos astuto que ele, nem amarrado ao mastro da embarcação resistiria aos (en)cantos e ao chamamento "be my boy" da Chan. Haveria de arranjar maneira de me livrar dos nós e atirar-me ao mar como qualquer mortal que tenha os sentidos intactos. E é assim mesmo que os mortais se afogam.
segunda-feira, janeiro 28, 2008
Ingrid, a corajosa
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.É preciso uma boa dose de coragem e um grande amor à arte para se abandonar a meca do cinema, abdicar-se do estrelato, rumar a Itália e resistir às dificuldades que é contracenar com actores amadores sem a mínima noção de tempo e espaço cénicos e que em muitas ocasiões mal sabiam as suas deixas. A não ser que Ingrid, ainda nos Estados Unidos, ainda antes de o conhecer pessoalmente, já se havia apaixonado por Rossellini, pelo que ele mostrou de si em filmes como Roma Città Aperta (1945) e Paisà (1946). O que, mais do que vir a dar no mesmo, exponencia o valor do acto: "perseguir" uma paixão, um amor, independentemente das fronteiras (artísticas, geográficas, etc.)..
Symphonic power metal
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Nightwish, Once (2004)
.Descoberta recente, por intermédio de uma amiga entendida no assunto. Bateu-me forte. Ouço-o obsessivamente, completamente apanhado pela voz de Tarja, pela sucessão de tempestades sonoras e tréguas intermitentes. A estrutura épica, orquestral, dos temas da banda finlandesa (como é evidente só podiam ser nórdicos) chega a ser galvanizante (exemplificado no tema "Nemo"). Pena que o protagonismo de Tarja e o ofuscamento dos restantes membros tenha ditado o seu afastamento. Os Nightwish vêm a Portugal, mas sem Tarja não será certamente o que poderia ser.
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Nemo, a nameless soul
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Nightwish "Nemo"
This is me for forever
One of the lost ones
The one without a name
Without an honest heart as compass
This is me for forever
One without a name
These lines the last endeavor
To find the missing lifeline
Oh how I wish
For soothing rain
All I wish is to dream again
My loving heart
Lost in the dark
For hope I'd give my everything
My flower
Withered between
The pages two and three
The once and forever bloom gone with my sins
Walk the dark path
Sleep with angels
Call the past for help
Touch me with your love
And reveal to me my true name
Oh how I wish
For soothing rain
All I wish is to dream again
My loving heart
Lost in the dark
For hope I'd give my everything
Oh how I wish
For soothing rain
Oh how I wish to dream again
Once and for all
And all for once
Nemo my name for evermore
Nemo sailing home
Nemo letting go
Oh how I wish
For soothing rain
All I wish is to dream again
My loving heart
Lost in the dark
For hope I'd give my everything
Oh how I wish
For soothing rain
Oh how I wish to dream again
Once and for all
And all for once
Nemo my name for evermore
Nemo my name for evermore
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Nightwish "Nemo"
This is me for forever
One of the lost ones
The one without a name
Without an honest heart as compass
This is me for forever
One without a name
These lines the last endeavor
To find the missing lifeline
Oh how I wish
For soothing rain
All I wish is to dream again
My loving heart
Lost in the dark
For hope I'd give my everything
My flower
Withered between
The pages two and three
The once and forever bloom gone with my sins
Walk the dark path
Sleep with angels
Call the past for help
Touch me with your love
And reveal to me my true name
Oh how I wish
For soothing rain
All I wish is to dream again
My loving heart
Lost in the dark
For hope I'd give my everything
Oh how I wish
For soothing rain
Oh how I wish to dream again
Once and for all
And all for once
Nemo my name for evermore
Nemo sailing home
Nemo letting go
Oh how I wish
For soothing rain
All I wish is to dream again
My loving heart
Lost in the dark
For hope I'd give my everything
Oh how I wish
For soothing rain
Oh how I wish to dream again
Once and for all
And all for once
Nemo my name for evermore
Nemo my name for evermore
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domingo, janeiro 27, 2008
Raising Victor Vargas
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.Férias iniciáticas em película. Um filme em ponto de fuga às regras do género. Para quem achar útil, aqui seguem algumas dicas do adolescente Vargas: bambolear as pernas participando com as ancas em cada passo e, sobretudo, lamber ostensivamente os lábios ao cruzar-se e meter conversa com raparigas (ao desviarem os olhos dos nossos, olham-nos para os lábios, assegura o jovem Vargas)..
sábado, janeiro 19, 2008
Orfeu e as feras [2]
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.Como naquele sketch do Gato Fedorento em que RAP, vestido e maquilhado à Mariza e interpretando um dos seus temas (de puxar à lágrima e ao sentimento), consegue com o simples alcance da sua voz sensibilizar o coração de ladrões (e escroques que tais) e dessa forma pôr cobro às suas malfeitorias. Sketch este que lembra a capacidade de Orfeu em apagar os sinais de discórdia que se geravam entre os tripulantes do navio Argos, subitamente amansados pela extrema beleza da música proveniente da sua lira..
Efeito Zelig [2]
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Ou a lei das compensações, nem que seja na ficção. Onde Woody é aditivo, Stalin foi deletério.
.terça-feira, janeiro 15, 2008
Jovem e influenciável
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Era jovem e influenciável. Doses massivas de Cristiano Ronaldo na TV ao som dos The Cure "Why can't I be you". Começou pelos brincos, penteado, roupa desportiva e bola de futebol. Mas faltava-lhe talento. No ginásio ia-se moldando um corpo atlético. Os músculos ora retesavam-se, ora entravam em espasmos, sinal de que no mp3, em modo repeat, se ouvia o "Why can't I be you".
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sexta-feira, janeiro 11, 2008
Batata quente
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.Numa certa manhã, tão longínqua quanto amorfa, cruzei-me com um mensageiro. À primeira vista notei-lhe o rosto pesaroso e uma ligeira corcunda. Mas só mesmo à primeira vista, certamente fruto de avaliação precipitada. Estudando-o com mais calma pareceu-me elegante e bem conservado para a idade, não se lhe destrinçando, como ajuízara há pouco, sinais de uma longa vida de pelejas ou de pesados fardos. Pelo menos não de ordem física. De outra ordem, suponho que sim. Expedito, o mensageiro, num movimento apurado e impositivo, barrou-me o caminho. Estaquei, sem a mínima vontade de o contornar ou dar meia-volta. Não tinha pressa. De certo modo estava-me nas tintas para o tempo. Fez-me sinal com o indicador para que me aproximasse. “Não querias mais nada.” Não movi um músculo. Nisto, sem perceber como, numa fracção de segundos, chegou-se a mim, delegando-me ao ouvido o teor da missão. Desde então sou estafeta. Empenho-me como posso, mas falta-me calo nas abordagens. Cedo descobri a regra: posições marcadas? passagem de testemunho? esqueçam! não há quem aceite parar por um instante e escutar. Reina a lei da pressa e do umbigo. Não os acuso, apenas constato. Também eu, embora estafeta, sou súbdito fiel da lei. Porém, temo que haja aqui uma nuance. Dada a condição presente, a natureza do meu dever, cabe-me amordaçar a bocarra individualista que há em mim. Se não late em maior extensão é fruto deste esforço de domesticação. Sem um catalisador externo também eu, provavelmente, não tomaria consciência. Mas as nuances são, por norma, fios duvidosos com que remendamos o fundo dos bolsos... Tenho sempre presente o que me disse o mensageiro na sua segunda aparição: “cuida-te, não exijas, sê antes paciente; sabes bem como a vida é breve, um instante aqui e no outro já não; olha, vê: mãos escaldadas todos as têm...” Até certo ponto confio. Quem me diz que todos aqueles por que passo não foram também eles destacados? Mas logo penso que se assim fosse, segundo o teor das funções atribuídas, cada um de nós deveria, antes de mais, primar por um certo rotativismo, o que, à partida, pressuporia uma boa dose de cooperação externa. Coisa que precisamente não se tem verificado. Creio que não. Entregue a mim próprio, a bem dizer, exclusivamente a mim próprio, nada posso: vejo-os passar. Sempre de passagem. E nisto frusta-se-me a razão de ser. Digo bem, a razão de ser, em virtude do que me foi confiado e que falho em transmitir. Ninguém liga, ninguém olha. Quando muito, de passagem, levantam o braço e enxotam-me com a mão sinistra. Mas um dia, creio mesmo nisso?, quem sabe numa certa manhã, farei parar alguém, falar-lhe-ei e seguirei em frente também, acompanhado. Passaremos. E, por uma temporada, as mãos escaldadas afligir-me-ão menos.
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quarta-feira, janeiro 09, 2008
A patinada das Quartas
.É quarta-feira, dia de aglomerações na praça central. Mais do que em qualquer outro dia, as ementas aprimoram-se e é ver os pratos mais recheados que nunca e o tinto vertendo à discrição. Porquanto o almoço caia bem, o homem é dono de si e põe-se a caminho seja para o que for. Então é ver o passo, que ainda não vai nada mal, merecer uma curta pausa no botequim não muito longe dali. Do limiar da porta ao balcão, à falta de palmadinhas nas costas e de malta a que se juntar, ensaia-se uma pose circunspecta, de estrutura massiça. Os fragmentos seguem colados a tinto e aos temperos de há pouco. Abanca-se e estuda-se a panorâmica. Ninguém, a não ser desconhecidos. Não seja problema: bebe-se mais um copo, que quarta-feira é um óptimo dia para criar laços. Brinda-se às quartas, pois então, e, por momentos, crê-se tenazmente que não se está entre gente anónima. Pede-se outra bebida. E mais outra. Entre goles, os olhos orbitam em redor, em trajectória errática. A sensação de fastio vai sendo empurrada a álcool. Se a vida é caprichosa, alomba-se-lhe com remédio. Agora é só mesmo esperar que o olhar se turve um pouco... “Foda-se! Tudo na mesma...” O mundo, as coisas, os desejos, as pessoas, eu: tudo na mesma. “O mundo, tão grande... grande só para não irmos longe... um sonho sem vias de acesso...” O tacto comprova-o na lisura do copo: está-lhe vedada a autenticidade, a rugosidade da vida. “Que se foda...” Mais uma rodada para diluir o que ainda haja para diluir e nesse entremeio talvez se inove o brinde.Ele é alguém que gosta de listas, anotações, registos, fragmentos dos seus dias e sentires. Começa a falar muito com o amigo do lado, inclusivamente sobre isso. Faz listas e registos relativamente a tudo: filmes, livros, músicas, viagens, quadros, acontecimentos, conversas. Até copy-pastes de entradas da Enciclopédia Britânica, não vá a memória tecê-las. Ou o diabo. “Puta que pariu o Alzheimer!...” Depois, num assomo não diluído, põe-se a nomear o que lhe parece inacessível. “O mundo é grande, muito grande...” Depressa estaca no ponto de partida. Aqui nada pode haver de enciclopédico: escasseiam os factos. O véu do que nunca teve estende a sua vasta e nostálgica sombra. «Tudo» é «o» substantivo: abrangente quanto baste. Unívoco no seio da indefinida heterogeneidade. É o seu elenco, o seu vocábulo mais restrito. “Balelas...” Tão simples quanto isto: não se recorda da pequena lista de há pouco. Sai-lhe do fundo das entranhas um longo bocejo. Estica os braços como quem pela extremidade dos dedos tenciona expulsar o torpor. Assunto arrumado: “Man, sou uma máquina registadora... podes crer que sou! Vai uma aposta em como mal chegue a casa vou anotar toda esta cena?” Do amigo do lado, nem um encolher de ombros. Nem tudo está perdido, se há quem em silêncio ainda tolere os monólogos de um bêbedo. Por fim sai, a remoer o assunto e a cambalear um pouco.Transposto o umbral, estaca a dois ou três passos. A luz do dia atinge-o sem dó nem piedade. Leva as mãos à cara - ao tacto parece-lhe chapa amolgada. Semicerrando os olhos, lá retoma o mergulho na fértil actividade da rua. A multidão já cobre cada palmo de terra, mas não lhe apetece contrariar o movimento, o automatismo das pernas, e parar para tentar perceber o porquê da reunião. Vai furando, investindo contra os escolhos, esbracejando contra a corrente. O desnorte e a passagem aleatória pelas malhas do crivo conduzem-no às escadinhas do patíbulo. Uma luzinha no cérebro: “É forçoso subir”. É, de resto, a única porção de terreno livre. O ar torna-se mais respirável à medida que sobe. Sabe-lhe bem – há acasos assim -, como emergir à tona após longa apneia. Apesar do equilíbrio precário, evita apoiar-se à balaustrada. A multidão aplaude-lhe o esforço misto de laivo de dignidade. Ele regozija por dentro, sorri e retribui-lhes com uma vénia. “O senhor é um homem de coragem...” diz-lhe alguém, ao mesmo tempo que lhe enfiam um capuz pela cabeça e uma corda ao pescoço. Fica escuro e apertado, os sentidos desfocados e o coro de vozes como que abafado. “Merda, não devia ter mergulhado... ainda me pára a digestão!” Dá aos braços para chegar à superfície, mas um mecanismo qualquer é subitamente accionado. Fica sem pé, a patinar indefinidamente no ar..
terça-feira, janeiro 08, 2008
Orfeu e as feras
"Sorstalanság (Sem Destino)" de Lajos Koltai
"Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se acalmavam." [Pierre Grimal]
O que vem na mesma linha dos que dizem que a música pode ter um poderoso efeito calmante. E este pressuposto deu azo, ao longo dos tempos, a pérfidas aplicações. Os nazis, por exemplo, serviram-se dela para os seus propósitos assassinos. Sabe-se que nos campos de extermínio, usavam a música na gestão do stress e do medo que antecediam o envio dos reclusos para as câmaras de gás.
Em "Sorstalanság (Sem Destino)" de Lajos Koltai (baseado na obra homónima de Imre Kertesz, que a seu cargo também tomou a escrita do argumento), ao contrário de outros filmes sobre a vida (ou ausência dela) nos campos de concentração nazis, não se viam por ali altifalantes a debitar música. Esta surgia apenas em off, como banda sonora (assinada por Ennio Morricone) acessível apenas a nós, espectadores. Isto pode querer dizer alguma coisa...
Da citação de Pierre Grimal também se pode inferir que lá por alguém possuir sensibilidade suficiente para apreciar uma boa peça musical, não será isso, nem por sombras, que fará dela melhor pessoa ou mais sensível ou sequer mais civilizada. Consta que as altas patentes nazis (e não só) eram grandes apreciadores de música. Não de todos os géneros, claro. Para dar um exemplo: detestavam jazz. Música degenerada, por decreto oficial. Também aqui a hipocrisia de quem destila falsos moralismos: alguns, em privado, certamente melómanos desse e de outros géneros. Não sei se Hitler figurava nessa categoria. O que se sabe é que ele vibrava com Wagner e quando podia marcava presença no festival de Bayreuth. E de facto tinha razões de sobra para o seu wagnerianismo febril.
O que vem na mesma linha dos que dizem que a música pode ter um poderoso efeito calmante. E este pressuposto deu azo, ao longo dos tempos, a pérfidas aplicações. Os nazis, por exemplo, serviram-se dela para os seus propósitos assassinos. Sabe-se que nos campos de extermínio, usavam a música na gestão do stress e do medo que antecediam o envio dos reclusos para as câmaras de gás.
Em "Sorstalanság (Sem Destino)" de Lajos Koltai (baseado na obra homónima de Imre Kertesz, que a seu cargo também tomou a escrita do argumento), ao contrário de outros filmes sobre a vida (ou ausência dela) nos campos de concentração nazis, não se viam por ali altifalantes a debitar música. Esta surgia apenas em off, como banda sonora (assinada por Ennio Morricone) acessível apenas a nós, espectadores. Isto pode querer dizer alguma coisa...
Da citação de Pierre Grimal também se pode inferir que lá por alguém possuir sensibilidade suficiente para apreciar uma boa peça musical, não será isso, nem por sombras, que fará dela melhor pessoa ou mais sensível ou sequer mais civilizada. Consta que as altas patentes nazis (e não só) eram grandes apreciadores de música. Não de todos os géneros, claro. Para dar um exemplo: detestavam jazz. Música degenerada, por decreto oficial. Também aqui a hipocrisia de quem destila falsos moralismos: alguns, em privado, certamente melómanos desse e de outros géneros. Não sei se Hitler figurava nessa categoria. O que se sabe é que ele vibrava com Wagner e quando podia marcava presença no festival de Bayreuth. E de facto tinha razões de sobra para o seu wagnerianismo febril.
Das condições passivas
.Voltou-se para o criado: "Cinzeiro!". Ordem a que este prontamente reagiu escancarando a boca para receber o tufo de cinza. Se discretamente se voltasse, retirando um lenço do bolso, ouviria algo do género: "Não, não! Ora! Faça o favor de engolir...".
Genes Vs Ambiente
.Mutações induzidas pelo factor tempo (bio-, sociológico). Peritos em diagnósticos diferenciais avaliam o nível de endorfinas, esse curioso parâmetro contemporâneo. Não perdendo qualidades, minguam no que toca ao tempo de meia vida, concluem..
Retoques avulsos
.Alberto Caeiro, no poema XXXVI de "O Guardador de Rebanhos", elege a Terra/Natureza como «a» obra de arte definitiva - a única - que não necessita de retoques. Temos a sorte de participarmos da sua quase divindade (isto sem que entremos em misticismos), simplesmente deixando-nos ir e vivendo sem acalentar sonhos que perturbem o nosso sono. Qualquer retoque, mais que desperdício (de energia, de tempo), é sempre um empreendimento avulso..
sexta-feira, janeiro 04, 2008
John Cassavetes – Faces (1968)
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Rostos belos, uns mais que outros; no fundo, todos belos; uns mais marcados pela (enferm)idade; outros, imaculados, sem marcas visíveis, o que não invalida que as hajam. A juventude, a jovialidade, não necessariamente sinónimos, disputam-se. Aparentemente o elixir da juventude bebe-se na proximidade, na companhia de pessoas na flor da idade. Não é algo que se adquire, supostamente já lá estava: porém, adormecido. Acorda e é algo que salta à vista: no riso quase histriónico, na gesticulação sem regra nem compasso. Por exemplo, na noite em que Richard Forst conhece Jeannie ou na cena do clube nocturno em que Maria Forst e amigas se deixam seduzir pela vitalidade do jovem Chet e se decidem por uma sequela, em casa, que a festa não podia morrer ali.A abordagem é por vezes crua de tão directa, como se estivéssemos não apenas a assistir mas directamente envolvidos nas conversas e discussões familiares. Por momentos somos espectadores cuscando os vizinhos do lado. Para esta pretensa proximidade talvez contribua o facto de o registo cénico e as performances dos actores não enjeitarem as do mundo do teatro: é um filme onde tudo vibra: corpos e diálogos. A clausura, os ambientes fechados também dão nota disso. É justo dizer que em Cassavetes, até certo ponto, cinema e teatro irmanam-se, contaminam-se (no bom sentido do termo). E este filme em particular até resulta da adaptação de uma peça do próprio Cassavetes. Além de planos cerrados, com a câmara colada à pele, o filme conta com sequências de extrema mobilidade, seguindo as personagens obsidiantemente pelas divisões. É nessa superfície do corte e do close-up versus mobilidade, mais do que na voracidade das vozes, que se vê algo de novo a irromper: um mal-estar, uma inquietude, que só podem ser dissipados por tracção e movimento.
As razões do mal-estar que divide o casal Forst não são totalmente explicitadas. Podemos tentar adivinhar o óbvio, correndo o risco da banalização: o cansaço acumulado ao longo de vários anos de vida em comum; Maria, a esposa entediada, sub-valorizada; Richard, o director-chefe de uma empresa importante, colidindo com a pacífica vida doméstica. Ao conhecer Jeannie (Gena Rowlands, em mais um grande desempenho), Richard (John Marley) encontra não apenas um escape, não apenas diversão e certa dose de folia, mas uma espécie de alma gémea. Não sendo pessoas de carpir mágoas por aí além, preferem antes dançar, cantar, beber. Elegem o riso como melhor remédio e nisso não poupam os pulmões: são ruidosos, quase estridentes, como para afugentar os espectros que os mortificam durante o dia. Luz e sombra em tensa e rica coabitação no olhar rasgado de Gena Rawlands, quanto a mim um dos rostos mais inquietantes que, bem para lá de telas e ecrãs, povoam o meu imaginário.
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Rostos belos, uns mais que outros; no fundo, todos belos; uns mais marcados pela (enferm)idade; outros, imaculados, sem marcas visíveis, o que não invalida que as hajam. A juventude, a jovialidade, não necessariamente sinónimos, disputam-se. Aparentemente o elixir da juventude bebe-se na proximidade, na companhia de pessoas na flor da idade. Não é algo que se adquire, supostamente já lá estava: porém, adormecido. Acorda e é algo que salta à vista: no riso quase histriónico, na gesticulação sem regra nem compasso. Por exemplo, na noite em que Richard Forst conhece Jeannie ou na cena do clube nocturno em que Maria Forst e amigas se deixam seduzir pela vitalidade do jovem Chet e se decidem por uma sequela, em casa, que a festa não podia morrer ali.A abordagem é por vezes crua de tão directa, como se estivéssemos não apenas a assistir mas directamente envolvidos nas conversas e discussões familiares. Por momentos somos espectadores cuscando os vizinhos do lado. Para esta pretensa proximidade talvez contribua o facto de o registo cénico e as performances dos actores não enjeitarem as do mundo do teatro: é um filme onde tudo vibra: corpos e diálogos. A clausura, os ambientes fechados também dão nota disso. É justo dizer que em Cassavetes, até certo ponto, cinema e teatro irmanam-se, contaminam-se (no bom sentido do termo). E este filme em particular até resulta da adaptação de uma peça do próprio Cassavetes. Além de planos cerrados, com a câmara colada à pele, o filme conta com sequências de extrema mobilidade, seguindo as personagens obsidiantemente pelas divisões. É nessa superfície do corte e do close-up versus mobilidade, mais do que na voracidade das vozes, que se vê algo de novo a irromper: um mal-estar, uma inquietude, que só podem ser dissipados por tracção e movimento.
As razões do mal-estar que divide o casal Forst não são totalmente explicitadas. Podemos tentar adivinhar o óbvio, correndo o risco da banalização: o cansaço acumulado ao longo de vários anos de vida em comum; Maria, a esposa entediada, sub-valorizada; Richard, o director-chefe de uma empresa importante, colidindo com a pacífica vida doméstica. Ao conhecer Jeannie (Gena Rowlands, em mais um grande desempenho), Richard (John Marley) encontra não apenas um escape, não apenas diversão e certa dose de folia, mas uma espécie de alma gémea. Não sendo pessoas de carpir mágoas por aí além, preferem antes dançar, cantar, beber. Elegem o riso como melhor remédio e nisso não poupam os pulmões: são ruidosos, quase estridentes, como para afugentar os espectros que os mortificam durante o dia. Luz e sombra em tensa e rica coabitação no olhar rasgado de Gena Rawlands, quanto a mim um dos rostos mais inquietantes que, bem para lá de telas e ecrãs, povoam o meu imaginário.
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