quarta-feira, janeiro 09, 2008

A patinada das Quartas

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É quarta-feira, dia de aglomerações na praça central. Mais do que em qualquer outro dia, as ementas aprimoram-se e é ver os pratos mais recheados que nunca e o tinto vertendo à discrição. Porquanto o almoço caia bem, o homem é dono de si e põe-se a caminho seja para o que for. Então é ver o passo, que ainda não vai nada mal, merecer uma curta pausa no botequim não muito longe dali. Do limiar da porta ao balcão, à falta de palmadinhas nas costas e de malta a que se juntar, ensaia-se uma pose circunspecta, de estrutura massiça. Os fragmentos seguem colados a tinto e aos temperos de há pouco. Abanca-se e estuda-se a panorâmica. Ninguém, a não ser desconhecidos. Não seja problema: bebe-se mais um copo, que quarta-feira é um óptimo dia para criar laços. Brinda-se às quartas, pois então, e, por momentos, crê-se tenazmente que não se está entre gente anónima. Pede-se outra bebida. E mais outra. Entre goles, os olhos orbitam em redor, em trajectória errática. A sensação de fastio vai sendo empurrada a álcool. Se a vida é caprichosa, alomba-se-lhe com remédio. Agora é só mesmo esperar que o olhar se turve um pouco... “Foda-se! Tudo na mesma...” O mundo, as coisas, os desejos, as pessoas, eu: tudo na mesma. “O mundo, tão grande... grande só para não irmos longe... um sonho sem vias de acesso...” O tacto comprova-o na lisura do copo: está-lhe vedada a autenticidade, a rugosidade da vida. “Que se foda...” Mais uma rodada para diluir o que ainda haja para diluir e nesse entremeio talvez se inove o brinde.
Ele é alguém que gosta de listas, anotações, registos, fragmentos dos seus dias e sentires. Começa a falar muito com o amigo do lado, inclusivamente sobre isso. Faz listas e registos relativamente a tudo: filmes, livros, músicas, viagens, quadros, acontecimentos, conversas. Até copy-pastes de entradas da Enciclopédia Britânica, não vá a memória tecê-las. Ou o diabo. “Puta que pariu o Alzheimer!...” Depois, num assomo não diluído, põe-se a nomear o que lhe parece inacessível. “O mundo é grande, muito grande...” Depressa estaca no ponto de partida. Aqui nada pode haver de enciclopédico: escasseiam os factos. O véu do que nunca teve estende a sua vasta e nostálgica sombra. «Tudo» é «o» substantivo: abrangente quanto baste. Unívoco no seio da indefinida heterogeneidade. É o seu elenco, o seu vocábulo mais restrito. “Balelas...” Tão simples quanto isto: não se recorda da pequena lista de há pouco. Sai-lhe do fundo das entranhas um longo bocejo. Estica os braços como quem pela extremidade dos dedos tenciona expulsar o torpor. Assunto arrumado: “Man, sou uma máquina registadora... podes crer que sou! Vai uma aposta em como mal chegue a casa vou anotar toda esta cena?” Do amigo do lado, nem um encolher de ombros. Nem tudo está perdido, se há quem em silêncio ainda tolere os monólogos de um bêbedo. Por fim sai, a remoer o assunto e a cambalear um pouco.
Transposto o umbral, estaca a dois ou três passos. A luz do dia atinge-o sem dó nem piedade. Leva as mãos à cara - ao tacto parece-lhe chapa amolgada. Semicerrando os olhos, lá retoma o mergulho na fértil actividade da rua. A multidão já cobre cada palmo de terra, mas não lhe apetece contrariar o movimento, o automatismo das pernas, e parar para tentar perceber o porquê da reunião. Vai furando, investindo contra os escolhos, esbracejando contra a corrente. O desnorte e a passagem aleatória pelas malhas do crivo conduzem-no às escadinhas do patíbulo. Uma luzinha no cérebro: “É forçoso subir”. É, de resto, a única porção de terreno livre. O ar torna-se mais respirável à medida que sobe. Sabe-lhe bem – há acasos assim -, como emergir à tona após longa apneia. Apesar do equilíbrio precário, evita apoiar-se à balaustrada. A multidão aplaude-lhe o esforço misto de laivo de dignidade. Ele regozija por dentro, sorri e retribui-lhes com uma vénia. “O senhor é um homem de coragem...” diz-lhe alguém, ao mesmo tempo que lhe enfiam um capuz pela cabeça e uma corda ao pescoço. Fica escuro e apertado, os sentidos desfocados e o coro de vozes como que abafado. “Merda, não devia ter mergulhado... ainda me pára a digestão!” Dá aos braços para chegar à superfície, mas um mecanismo qualquer é subitamente accionado. Fica sem pé, a patinar indefinidamente no ar.
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2 Comentários:


Blogger margarida disse...

________________ curvo-me perante a excelência destas palavras. Agradeço o exemplo de vida. Sairei como se o que acabo de escrever fosse apenas e simplesmente um comovido silêncio.

10/01/08, 01:22  

Blogger verdades_e_poesia disse...

Bom texto. Caracteriza bem, a alma de um alguém que bebe para afogar as mágoas, porque também se bebe sem se afogar coisa alguma... E quem não se sente assim pelo menos uma vez na vida?

14/01/08, 12:35  

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