sexta-feira, dezembro 11, 2015

We can talk by the river





São de Perth, lá nas Austrálias. E só por aqui já me parecem tão boa gente. Para mais, têm um pé dentro e outro fora dos Tame Impala. Cá para mim são todos irmãos e moram na mesma casa. E tal como estes, uns mãos largas. Poucas vezes vi quem orientasse tão bem o pessoal em carrinhas pão-de-forma multicores por meio de um trilho de psilocibinas. Exagero um pouco, mas a culpa é deles: aventurem-se pelos vídeos. Esta música em particular tem-me levado em viagem. Por rios, por mares: «we can talk by the river / we can walk right out to the sea». São tantos os cenários e modulações até àquele culminar fantasmático de acordes de guitarra (que ressoam e perduram uma fracção de tempo, o suficiente para gerar a sensação de que alguma coisa, algures, não sei onde, se despenha, se corta... para dar origem a outra coisa; como se alguém premisse o botão de uma serra eléctrica para logo afrouxar a pressão - ok, aqui devo ter andado a fazer geocaching e encontrei alucinogéneos); acordes que por sua vez vão fazendo caminho para o final, para o coro quase sobrenatural de vozes, como que a arrancar do além um segredo oculto: «it took you all the time to know». E lá atrás, nunca esquecidos, estes dois versos: «we can talk by the river / we can walk right out to the sea». Do mais simples que há e que contudo não cessa de ecoar aqui dentro. Um rio onde se poderia ficar à conversa ou seguir até ao mar. Lembra-me que há coisas de que sou grato à vida, como a sorte de ter um rio - e muito mais que um rio - a que posso chamar casa. A de ter um mar que ao longo de anos foi esculpindo amantes em rochas à beira-mar. E não precisei de ir e vir do além para saber desta minha gratidão.



segunda-feira, dezembro 07, 2015

Curious about curiosity




Por que é que se deve ler Alberto Manguel? Porque, entre muitas boas razões, nasceu em Buenos Aires. Porque quando era jovem leu para Jorge Luís Borges. Porque é um grande amante de livros e co-autor de uma pérola como o "Dicionário de Lugares Imaginários". Porque é um escritor que nos contagia com a sua curiosidade insaciável, como bem demonstra uma das primeiras frases de "Uma História da Curiosidade": «I am curious about curiosity.». E que prossegue assim: «One of the first words that we learn as a child is why. Partly because we want to know something about the mysterious world into which we have unwillingly entered, partly because we want to understand how the things in that world function, and partly because we feel an ancestral need to engage with the other inhabitants of that world, after our first babblings and cooings, we begin to ask “Why?” We never stop. Very soon we find out that curiosity is seldom rewarded with meaningful or satisfying answers, but rather with an increased desire to ask more questions and the pleasure of conversing with others. As any inquisitor knows, affirmations tend to isolate; questions bind. Curiosity is a means of declaring our allegiance to the human fold.»



sábado, dezembro 05, 2015

Tracks




(John Curran "Tracks", 2013)



Uma pequena caravana no deserto,
assim as nossas vidas.
Com raros oásis a suavizá-la.



Black Friday



(Ren & Stimpy)

O Black Friday (uma cena marada importada dos Estates há uns bons anos a esta parte) já lá vai. Mas para memória futura aqui fica o rescaldo de um episódio. Os olhos esbugalhados e meio alucinados do sr. Ren, continuamente voltados para mim e para a minha colega, bem que deviam ter-me deixado de sobreaviso. Já nem tanto o pormenor de se ter chegado ao balcão sem devolver o nosso cumprimento. (Sim, um elementar «bom dia» parece ter sido altamente taxado e muitos de nós, que de boa fé ainda para aqui andamos a distribuir bons dias e tardes e noites, simplesmente não nos demos conta e não fazemos a mínima do quanto isso nos vai sair dos bolsos. Adiante, que eu acredito que o Centeno irá reverter isso em breve). De acordo com o sr. Ren (assim nomeado em homenagem ao «emotionally unstable chihuahua» [fonte wikipedia] de olhos esbugalhados, da série Ren & Stimpy), não passaríamos de uns provincianos desrespeitosos ao nos termos associado a uma campanha promocional tão infame como o Black Friday. Muito ao início ainda julguei que a indignação do sr. Ren viria de um súbito aneurisma anticapitalista e isso, convenhamos, dependendo da severidade, ainda vá. Mas nada disso. O que na presente situação definiu a linha vermelha (não a paulo-portiana, antes fosse) que o catapultou para uma deriva meio quixotesca foi "tão só" o nome da coisa. E porquê? Porque duas semanas antes, no fatídico 13 de Novembro, uma sexta-feira 13, uma sexta-feira negra, haviam ocorrido os atentados de Paris de que todos ficámos a par e todos lamentámos com pesar, incredulidade e indignação. Pois bem, duas semanas depois, ali estavam estas duas alminhas ao balcão, quais vendilhões do templo, a dar a cara a uma campanha (não acordada nem decidida pelas tais alminhas) e que, para nossa estupefacção (eu devia era estar mesmo com um ar aparvalhado), estariam supostamente a denegrir a memória dos que haviam falecido e sido feridos nessa noite e a relegar à indiferença as dores dos familiares. Em França houve de facto uma vaga para passar a designar o Black Friday por outra coisa. Compreendo e respeito os motivos, o sofrimento, as susceptibilidades envolvidas. E por lá passou-se a chamar o dia de XXL Days. Mas aqui não. Aqui na província, insensíveis, aferrámo-nos ao bom e velho nome. Aqui não houve nada de nada. Sequer uma só notícia de um tuga em solo nacional a manifestar algo de semelhante a solidariedade. Compreendo agora que a boa consciência e o sentido de justiça do sr. Ren, o auto-proclamado guardião moral da memória das vítimas, apenas clamava por paz e que neste contexto adverso, por nós fomentado, essa desejada paz só poderia vir na forma de um XXL Days. Sim, com um nome destes (ou outro) já ele poderia comprar sem mácula os dois livros que trazia na mão e que acabou por largar enojadamente. Por mim, sinceramente, que se foda o Black Friday. E senhores como o sr. Ren que se julgam luminárias e autoridades morais acima dos pobres conterrâneos.



sexta-feira, dezembro 04, 2015

In media res


"Todo o começo, afinal de contas, nada mais é que uma continuação, e o livro dos eventos está sempre aberto a meio."

Wislawa Szymborska


Amor Heróico


"O mundo só pode ser salvo de inevitável decadência por um acto de Amor Heróico (...) Na prática, Amor Heróico significava foder cinco ou seis vezes por noite, todas as noites, com muitas acrobacias e golpes de luta livre meio sádicos à mistura."

Thomas Pynchon, V.


quarta-feira, dezembro 02, 2015

Kafkiana autofágica ou as partidas que a mente prega




(de Christophe Huet)


Um bicho qualquer mordera-lhe a perna. Porém, ninguém com tino haveria de o confundir com um bife. Por que raio então lhe passara um tal impulso pela mioleira? Gregor Samsa percebeu enfim porquê. E as lágrimas salgaram-lhe a refeição.



Porque a vivemos


(...)

"aprofundada por trabalho honrado, aquela morte própria
que tanto precisa de nós porque a vivemos,
e da qual nunca estamos mais próximos do que aqui."

(...)

Rainer Maria Rilke
trecho do poema "Por Wolf Conde de Kalchreuth"
(tradução de Paulo Quintela)



Guerra dos mundos


"Há um mundo, o mundo sensível, que é filho da fome, e outro mundo, o ideal, que é filho do amor"

Miguel Unamuno, Do Sentimento Trágico da Vida