sexta-feira, agosto 31, 2007

"Mal" de Alberto Seixas Santos (1999)

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Digressão algo pessimista sobre uma civilização doente, a braços com uma profunda crise de valores, onde há despejos, droga, demolições, abandono, egoísmo, roubo, adultério, morte, solidão, suicídio, SIDA. Para tanto mal parece justo pensar não haver redenção possível. No final, que peca por saber a pouco, apenas isto: um agitar de velhas profecias bíblicas (às portas do novo milénio): o apocalipse, não ao som de cornetim, mas de estridentes sirenes. De certo modo um fim reinventado, porque contido, não literal: há escuridão, desesperada correria, corpos nus e gritos anunciando o fim do mundo, mas não se vêem chamas. Apenas uma luz que cega e "vozes de anjos". Ausente, ou em aberto (por omissão), a representação simbólica do objectivo purificador que preside à destruição. Sem curas milagrosas, o mundo contemporâneo lá segue o seu caminho, não se sabe se para melhor se para pior. Ao menos a viagem continua, mas, aparentemente, não o daquelas personagens. Não o sabemos. Uma nota de esperança, mesmo que ténue, é o que em vão se procura no corte abrupto do filme.
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quinta-feira, agosto 30, 2007

A invenção de Morel


Dias se passaram sobre a leitura. A estranheza que me acompanhou da primeira à última linha vem-se diluindo. Posso afirmar agora que assisti a um prodígio da arte de narrar, de levantar o véu pouco a pouco, sem que contudo nos aproximemos do todo.



quarta-feira, agosto 29, 2007

Concepções de infinito

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Giorgio de Chirico, The Nostalgia of the Infinite (
1913-1914; datado 1911)
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Apesar das milhas que os separam (em termos de forma, formato e conteúdo), quando penso em Jorge Luís Borges o meu centro visual povoa-se de Chirico. Talvez derive com eles num jogo de conceitos abstractos, nostálgico porque inatingíveis. E no meu caso, para meu mal suplementar: inconsequentes.
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Gnothi se auton

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Nem sempre dando por isso, os dias testam-nos de diversas maneiras. Todos os dias numa secreta peregrinação a Delfos. Desapossados de fé, tomamos desvios, atalhos, sabendo que o caminho mais curto é o trilho da perdição. Somos geómetras da tangente a Delfos, ao templo de Apolo, onde nos fulminaria o inextricável alcance destas palavras.
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Escrito na pedra

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Um pouco à semelhança dessas inscrições (piscares de olhos a supostas verdades e ordenações cósmicas - sustento dos templos gregos), que, em ressonância universal, perduram nas pedras lambidas pelo tempo, assim se recuperou hoje, de Primo Levi, no Público: Os objectivos de vida são a melhor defesa contra a morte.
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Entre irmandade e egoísmo, segundo Honoré

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Três quecas que foram rezas: pela saúde do irmão?
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sábado, agosto 25, 2007

Em estado de choque

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Acordar e levar assim uma bofetada.
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Sur le pont ... on y danse, on y danse




Que cena a da ponte sobre as águas do Sena...



Mortalha

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Põe-se trancas à porta. Estende-se um lençol branco, imaculado, vasto o suficiente para cobrir toda a superfície do quarto. É importante não se apagar a luz. Imprescindível o branco da mortalha para diluir o negrume.
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sexta-feira, agosto 24, 2007

Woody "Alien"

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Alien in U.S.A, good fellow in Europe, some kind of God in Cannes, an addiction to my brain and lungs.
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sexta-feira, agosto 17, 2007

Tresler

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O perigo de ler muito é tresler. E isso, na certa, pode levar à loucura. Tudo começa e acaba pela óptica, mesmo que mudando de óptica. Ver permite-nos ler (óbvio) e ler permite-nos ver mais e diferentes coisas (nem sempre óbvio); também as mesmas coisas, mas sob prismas e/ou roupagens diferentes. Males vêm quando se passa a ver muito ou a julgar-se que se vê muito. E isto um pouco a propósito do filme The Addiction (Os Viciosos) de Abel Ferrara.
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Heights

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Não acredito em intervenções ex machina, nem aguardo pela salvação - qualquer que seja o universo: real ou ficcional (se é que se distinguem).
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quinta-feira, agosto 16, 2007

Poiesis [2]

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Knud Odde, Rainer Maria Rilke (1997)

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Rilke, o visionário enfermo, o aristocrata amaneirado e simbolista do final de século, o flâneur de Paris, que do aprendizado com Rodin passou a escultor de poemas atento aos objectos. Volvido um quarto de século, consumou os preparos modernistas em Duíno.
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Für ein kind

"Assim eu me fui impondo a tudo
embora tudo vivesse contente sem mim
e se fizesse mais triste carregado de mim."

Rainer Maria Rilke
trecho do poema Por um menino
(tradução de Paulo Quintela)
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“Bubble”

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“Bubble” de Steven Soderbergh é no mínimo um filme perturbante. A ambiência lembra-me um pouco Hitchcock e Chabrol em versão contida, mas sobretudo os irmãos Dardenne. O código de valores é o da América fabril, dos que se revezam entre dois empregos. Os rostos quase imperturbáveis, as respostas monossilábicas, seres fechados dentro de si, silenciados numa rotina de trabalho e cansaço, talvez contagiados pelo terrível silêncio das bonecas na linha de montagem que pacientemente vão produzindo na fábrica. Martha, a figura central do filme, em cuja candura se advinha um rosto de boneca, de olhos azuis capazes de encerrar segredos insuspeitos, é das poucas personagens que tagarela, que procura ir ao encontro do outro. Nos demorados close-up prestamo-nos a jogos de indagação. Fazem-nos desconfiar que, sob a aparente normalidade, toda ela borbulha por dentro, dilacerada por solidão e anseios de correspondência, por alguém que a procure verdadeiramente e não apenas para que lhe peçam este ou aquele favor. Fugindo da superfície, da visibilidade, vamos pressentindo que uma bolha lhe molda a vida interior e que determinadas circunstâncias podem detonar. Um rosto iluminado, o olhar próximo da epifania, nem por isso deixam de ser sinónimos de dualidade. Exemplificado fica que a maldade nem sempre é exercida conscientemente, que o bem e o mal são conceitos relativos que andam a par.
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Thousand years

“Seven days and not one glance from her.
Seven days are a thousand years.
Seven days and not one word of her.”

Kate Moss, Maximilian Hecker
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quarta-feira, agosto 15, 2007

«Exercícios de Solidão»

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Knud Odde, Jetty (2002-2004)

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Conheço os sete corredores da solidão.
Sete rios que vão dar ao silêncio.
Onde as aves vêm beber
a breve seiva da terra
nas águas lentas da memória.
Há também a neve,
os cantos com crianças dentro
e uma lágrima que vai dar ao mar.
É isto a solidão.
Uma aldeia ou um barco
no cais deserto.


José Oliveira

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domingo, agosto 12, 2007

Intermitência

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Fecho os olhos como quem se esquece de um sonho
que passou célere para fecundar um outro
mais próspero, menos conforme ao anterior
sobre o qual pesou toda a diferença de não ter sido de dia
o sonho inteiro que lhe seria dado ser à noite.
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sábado, agosto 11, 2007

Ingmar's hug

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Abraçou o mundo por via das artes. Partiu, deixando-o mais rico na lancinante exposição dos seus interstícios. Eterna permanecerá a memória do seu olhar, residente camuflado em cada abraço.
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Vitaminas


Damien Hirst, Pill Cabinet
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Percorremos ruas, percorremos estantes. Entre a panóplia de suplementos vitamínicos, nunca encontramos o que mais queremos. Suspiramos às refeições. E a fruta no prato, à nossa frente, sem que alguém lhe toque...
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Elvis Presley (aka The King) "Blue Moon"

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Blue moon,
You saw me standing alone,
Without a dream in my heart,
Without a love of my own.

Blue moon,
You knew just what I was there for.
You heard me saying a pray for
Someone I really could care for.

Blue moon,
You saw me standing alone,
Without a dream in my heart,
Without a love of my own.

Blue moon...
Without a love of my own.
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Pérola

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Três histórias ligadas entre si: espacial, temporal, musical e circunstancialmente. Noite num hotel de Memphis - cidade do "King" Elvis. Na rádio, a voz do rei é um lamento dirigido à "Blue Moon" - tom quebrado pelo som de um tiro ressoando pelas paredes e quartos do hotel. Minimalista, o tom, o argumento do filme, proíbe-me de revelar mais. Uma pequena adenda: quanto a mim o episódio com mais pinta é o dos japoneses. A rapariga passa metade do tempo em agradecimentos e eu, mediante o calibre da pérola, também para lá caminho.
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King of cool

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Jim Jarmusch
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Inexistente

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Teu é o rosto irreconhecível que enseja
um olhar distante, ausente
derramando-se pelas margens, de escolta
a um lugar inexistente.
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quinta-feira, agosto 09, 2007

Não receies as palavras...

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Lorelei canta e desvia o olhar ao marinheiro.
Ainda que náufrago, as mãos não se arredarão do leme,
nem que rochas magnéticas a embarcação despreguem inteira.

Aceita os desvios à rota traçada por correntes imprevistas.
Sê fiel às confidências fixadas no livro de bordo,
nem te movas de remorsos por elas.

Com as mãos no leme flutua ainda o náufrago -
coisa que nem os búzios previram.
Tentado que estás (se te salvares) a rasgar essas páginas,
exorta-te o mar, que te tem à sua mercê:

Não receies as palavras,
ou sequer a tua voz inscrita...
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quarta-feira, agosto 08, 2007

A última escala do tramp steamer

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Álvaro Mutis, na sua adjectivação certeira e escrita enxuta, introduziu-me, como poucos até hoje, às artes e encantos de marear. Às suas rotinas tramadas, também. Abriu-me um portal de onde pude mirar os espíritos daqueles cujos hábitos condensam uma forma muito própria de viver e pensar, um peculiar arrastar de modos e circunspecções, que adquirem anos a fio nessa lenta escorrência do tempo, nessa copiosa suspensão sobre águas. Fui leitor, tripulante e passageiro, navegando rios acima num tramp steamer decadente. Assisti aos seus destinos, aos elos fiados ao longo de várias e distantes aportagens. Respirei os primeiros ares de cidades costeiras, mesmo nunca lá tendo estado. Percorri ruas ora caóticas, ora sedutoras. Admirei com Iturri a sensualidade feminina do levante. Warda, de seu nome. Vi rasgos de luz encarnarem num corpo, perfilado harmoniosamente por uma sensibilidade rebelde e inconformada com a sua sina de levantina. Ouvi os rumores de sentimentos a agitarem-se. Aflorei, voyeuristicamente, num quarto em Lisboa, a primeira noite de amor de Iturri e Warda. Fui ouvinte atento desse amor narrado, desfiado ao longo de longas noites à coberta do cargueiro Alcíon. Acompanhei, sofri com o desenlace. Aceitei-o, resignado, frente aos desígnios que desde a génese o congeminaram. Para terminar, apenas me ocorre dizer que valeu a pena a viagem a bordo deste belíssimo livro.
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segunda-feira, agosto 06, 2007

Poiesis

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Dos penhascos recuperou-se um dia, intacta, a lira de Orfeu.
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quinta-feira, agosto 02, 2007

O enrodilhado fio dos phones

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Solitárias, abraçam-se a si próprias como quem se estrangula. Acordam a meio da noite tomadas de susto com certos sons no ouvido: o mp3 soa ao arfar de um assassino. Contudo, algo as impede de se libertarem da pressão do nylon no pescoço: um desejo pueril de adormecerem com a morte.
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From an angry chair

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Tenho enfardado filmes uns a seguir aos outros. Nos intervalos uma voz alerta: escapes existenciais só se interrompem com uma OD.
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