quinta-feira, maio 31, 2007

A letra «A»

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No muro do estabelecimento prisional de Coimbra City, alguém, um inconformado com a generalidade das sentenças judiciais, grafou "Soltem os prisioneiros". Não fui eu. O meu pulso anárquico não dá para tanto.
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Shakespeariana

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Nos dias de festa, partia à dentada as cascas de nozes, desbravando todos esses mundos interiores que lhe cabiam em sorte.
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sábado, maio 26, 2007

Ping-pong [8]

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- Seguimos na cauda das tecnologias, esperando que elas nos introduzam a meio mundo.
- Mas na verdade isolam-nos. As nossas palavras formam ilhas. Um mundo desabitado, desabrido. Só lá vivemos nós, à semelhança de Astérion.
- Pois. O último senso dizia: zero habitantes.
- De facto. Poucos são os que se acostumam a hábitos tão insulares. Até mesmo eu estou para abalar.
- Prescientes disso, já não construímos casas. Já só alugamos.
- É tudo tão... transiente. Portos e apeadeiros vão e vêm.
- Somos passageiros que não deixam marca.
- Em lugar nenhum.
- Vamos todos no mesmo barco.
- Tendo no clic o nosso denominador comum.
- Clicamos uns nos noutros, como inocentes que dão as mãos e procuram conforto na bondade de estranhos.
- Abrimos janelas, desejosos de um pouco de luz.
- Desse calor de reconhecermos um pouco de beleza.
- E a beleza é transiente?
- Hesse dizia que sim, que só assim poderia ser reconhecida e admirada como tal.
- Desprendemos um olhar fugaz a uma página entre mil e formamos uma imagem.
- Fixamos instantes.
- Fixamos polaróides.
- Como se fossem definitivas.
- Como se fosse a definição.
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Ping-pong [7]

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- Ainda por aqui?
- Pois.
- Perda de tempo.
- Queima.
- Sabemo-lo bem, mas ainda assim...
- Lei do magnetismo, versão nossa e de meio mundo à cata de si e de não se sabe bem do quê.
- E nesse entretanto... avolumamos paleio.
- Com o único fim de ser esquecido.
- Como tudo o resto, aliás. E sendo assim, porque não?
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Ping-pong [6]

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- Que ganhas em desabafar aqui? Algum consolo?
- Consolo nenhum. Deixo isso para a religião.
- Ordem?
- Antes a desordem.
- A satisfação de acrescentares alguma coisa?
- Pergunta mal formulada...
- A presunção de acrescentares alguma coisa?
- Uns quantos bits. Zeros e uns.
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Ping-pong [5]

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- Não te maça desabafar aqui?
- Maça. Mas o Blogger é amigo, um bom ombro.
- O ombro dos solitários.
- Dantes era o diário.
- Continua a ser.
- Sim, para os mais empedernidos.
- Nem só. Diário high-tech, cada vez mais. De fácil manejo e alcance.
- Ou pechisbeque.
- No que me diz respeito, amiúde.
- E umbigos à solta? Alguns bem giros...
- Umbigo? Sim. Por aqui também. Definitivamente. Giro é que nem tanto.
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Ping-pong [4]

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- O que te falta para seres feliz?
- Nada. Absolutamente nada. Não há nada que me possa fazer feliz.
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Anda no ar

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Flores que se entrelaçam nos bancos de jardim. Lábios pousando como borboletas. Áleas formando cúpulas testemunhas de doces confissões. Ruas percorridas de cores, de sorrisos vespertinos. Anda no ar e conduz o flâneur a estas parcas linhas.

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Google

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Para uns quantos eleitos, uma espécie de Beagle rumo às Galápagos.
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Viagens a bordo do Google

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Paclitaxel, Taxol, Cremopher EL, Gp60, SPARC, transcitose caveolar e ABI-007 (ao serviço de sua majestade).
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sexta-feira, maio 25, 2007

Em aceleração

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Astrofísicos e astrónomos andam desconcertados. Compreendo-os bem. Numa noite escura olho para o céu e também fico. O universo expande-se, mas não como se supunha: não em desacelaração por efeito da gravidade. Pelo contrário, está em expansão acelerada, o que aponta para a existência de uma força/matéria (?) que contraria e se sobrepõe ao efeito gravítico global. Andam todos a teorizar sobre o que possa ser essa matéria "negra" (assim denominada, basicamente, por no que se refere a isso andarem todos no escuro), como se formou, onde se concentra, de que forma actua. Que ilações práticas podemos tirar sobre o que se passa aqui na terra? Andam astrofísicos e astrónomos consumidos em fórmulas matemáticas e observações estelares, mas então e os astrólogos? Vá, façam o favor de se pronunciar, alvitrar e alardear pseudo-cientificamente.
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quinta-feira, maio 24, 2007

Des(a)prender

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Vivia na imanência de uma palavra cuja pronúncia desaprendera à martelada.
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domingo, maio 20, 2007

Grato

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Ela dispõe à minha frente uma mão cheia de nêsperas, acabadas de colher. A mesma mão que me embalou no berço, mostra-me que lá fora ainda amadurecem frutos - de novas árvores.
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Joguete

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Muitos campeonatos atrás, quando ainda se sentia em forma, Deus jogava à bola. Por vezes acontecia um chuto com mais força e lá se furava a Terra. Quando deixou de conseguir remendá-la, despachou-a para longe, arrumou as botas (pontas de aço) e reformou-se.
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Costureiro

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Já há muito que ando nesta profissão. Sei tudo quanto há a saber sobre retalhos e costuras. Portanto, confie no que lhe digo: nem esse manto de cinismo, nem esse recorte de amargura lhe assentam bem.
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Mitológica: é mito ter lógica

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Hendrik de Clerck, The Punishment of Midas (c. 1620)

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Levadas em êxtase com todo esse festim de ouro, acabaram comidas em mineral. Outras, mais precavidas, acabaram co’ Midas. Antes co’ Midas que transformadas em ouro.

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Coctail de drogas

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Caro Tiago, permita-me este breve apontamento: esqueceu-se de nomear as endorfinas... É que estão entre os principais ingredientes desse coctail. E o sabor do dito, ao que parece, varia em função das doses partilhadas entre os pares. Ora será doce, ora amargo, ressalvando as devidas variações e gradações, bem como o imenso rol de efeitos secundários.
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Entrópico [4]

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O universo expande-se porque foge da ordem contracentracionária primordial, dessa singularidade anterior ao Big Bang. A entropia está presente desde os primórdios e sobreviverá a todos nós.

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Entrópico [3]

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Parece uma fórmula mágica capaz de responder a quase tudo. Tenho a certeza que alguém já terá formulado a hipótese da entropia também poder explicar a queda dos regimes fascistas. Não há ordem capaz de resistir por muito tempo às forças e às leis da natureza.

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Entrópico [2]

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Aliás, também o envelhecimento pode ser encarado como uma lenta caminhada entrópica, um estado de progressivo desarranjo e disfunção. E essa é das poucas certezas que temos: envelhecem as civilizações, as sociedades e as pessoas que as suportam.

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Entrópico [1]

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Tender para a entropia é sempre um processo termodinamicamente favorável. Quem disse que a Física é uma ciência alheia ao estado do mundo e aos estados anímicos?

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sábado, maio 19, 2007

Nada a fazer

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Arreigado ao princípio de que nada tinha a dizer, sentia-se livre e inclusivamente no dever de o demonstrar.
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Nada a fazer, desabaratar tempo de forma escancarada era a sua terapia de choque.
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O seu único acto de insubmissão passava por expôr o que a consciência lhe ditava que ocultasse.
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Só lhe faltava arrancar as folhas do diário, subir ao ponto mais alto da cidade e atirá-las ao vento, espalhá-las como migalhas.
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Há que acreditar em algo, nem que seja inventado. Talvez por isso se escreva tanto.
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Quanto dura uma crença? O tempo que medeia ao nascimento de uma frase.
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A discrição e a boa educação dita que não gritemos a plenos pulmões, que o façamos antes por escrito.
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Das piores, das mais dolorosas ilusões perdidas talvez seja a da comunicabilidade. No que respeita à pior, reservo-me ao silêncio.
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Desde há muito que nada levo a sério. O que talvez explique que não faça coisas, mas que antes as vá fazendo.
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Caro amigo: só investe em fundos quem ainda deposita esperança num futuro para vir a gozar dividendos.
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Oriente-se [2]

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Levou tão à letra a expressão orientar-se na vida, que em vez de rumar a um "oriente" mais próximo, como por exemplo ao Vaticano, o melhor que lhe ocorreu foi seguir o exemplo de certas celebridades e converter-se de imediato ao budismo. Tempos em que se aspira a resultados céleres, já se sabe.

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Oriente-se [1]

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Levava uma vida tão ocidentalmente desorientada, que deu por si a pensar se não deveria rumar ao Oriente para se orientar na vida.

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A estatística

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De um só trago, empinava shots uns a seguir aos outros. Entre cada um, um pequeno sinal no diário, actualizando a estatística. Saído das Matemáticas, concorrera ao INE – ele e mais uns milhares de jovens -, e, para não ir perdendo o jeito, exercitava-se assim com números, uns após outros. Mas os que anotava não eram tão distantes, nem tão frios como os saídos regularmente do INE. Pelo contrário, queimavam.

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Soul power

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A pensar num tema dos Tarwater: sim, também gostava de ter soul power. Gostava de poder ser esse tipo de central energética.
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sexta-feira, maio 18, 2007

O Homem Mais Que Invisível [2]

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O Homem Invisível, com a quantidade de ligaduras a cobrir-lhe o rosto, ainda assim chamava a si algumas atenções. Já o Homem Mais Que Invisível, tendo rosto (visível), granjeava bem maior anonimato.

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O Homem Mais Que Invisível [1]

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Era de tal modo invisível que dispensava adereços e maquilhagem para contracenar como duplo do Homem Invisível.

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quinta-feira, maio 17, 2007

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Julgo que quem (ad)ministra (doses de) conhecimento não precisa de fazê-lo com arrogância. Entristece-me verificar que conhecimento pouco ou nada tem a ver com sabedoria.



Escadas Monumentais de vidro

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Curiosamente, a queima das fitas deixou poucas fitas pelas ruas. Já não digo o mesmo dos cacos de vidro. De fora até parece que se queimou mais álcool que fitas. Mas isto já é dor de cotovelo a falar. Nem queimei fitas, nem queimei álcool. Queimei foi mais uma oportunidade, foi o que foi. E algumas pestanas no trabalho.
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Absorventes

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Pairaram flocos de "algodão" por Coimbra e Leiria. Como se quisessem absorver exsudatos de feridas distritais.
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Caracteres em esperanto (também com d)

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Se fosse uma árvore de jardim, invejaria a sorte daquela que é retalhada à superfície por apaixonadas lâminas, deixando inscritos os mais variados caracteres dessa espécie de língua universal. O amor será o esperanto em versão bem sucedida?
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quinta-feira, maio 10, 2007

In the pursuit of the unknown circus lady

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(Intermezzo googleano e sebaldiano).
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domingo, maio 06, 2007

Berlinette

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Descubro, divertido, que "Ich bin ein Berliner", a célebre frase que ficou para a história no que é considerado o melhor discurso do presidente dos E.U.A. John F. Kennedy (Junho 26, 1963), padece afinal de um pequeno erro gramatical. Basicamente, o artigo indefinido "ein" está ali a mais, alterando significativamente (quem diria?) o sentido da frase. Em vez de significar "Eu sou um cidadão de Berlim", milhares de berlinenses ouviram de J.F.K que ele, presidente dos E.U.A., era uma bola de berlim... Na realidade as coisas não se passam bem assim. Para mais esclarecimentos sobre o assunto dirijam-se ordeiramente aqui. Na verdade, este apontamento, repescado dos anais da história, serve apenas para vos introduzir a uma berlinette de que gosto bastante: Ellen Allien.
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Um senão...

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É que nós por cá estamos bem imunizados em relação a marcadores de (in)eficácia, nomeadamente, no que respeita a boas intenções promovidas por decreto... Com efeito, os decretos primam por barrar (o caminho a) não sei quantos - isto quando não o contrário.
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Decreto barra não sei quantos: enough is enough! de Maio de 2007

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Chris Friend, Floating Figures 1

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Basta de posts maníaco-depressivos! R.I.P., em letras garrafais, para todos esses escritos negativistas!
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Da (felic)idade

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Enroupado, em virtude de um ligeiro anúncio de gripe sob forma de varridelas de frio, envergando monocromaticamente dos pés ao pescoço roupa exclusivamente preta (isto para absorver tudo quanto lhe chegasse desse esplêndido sol das tardes de Maio); os cabelos desgrenhados oscilando como farrapos; curvado pelo hábito, pelas (poucas) horas de trabalho; assim caminhava ele à volta do jardim. Não obstante as modalidades harmoniosas veiculadas na luz, nos sons, o ambiente parecia-lhe algo irrequieto. Corria uma leve brisa, que no entanto dir-se-ia incapaz de motivar tal impressão. A folhagem de lírios ladeando o passeio, assim como a das roseiras apoiadas ao longo do muro, respondiam de forma agitada, mais do que seria supor, como se à passagem daquele vulto negro lhe advinhassem o vendaval de pensamentos. Completava voltas e mais voltas, sem abrandar nas curvas como um obstinado maratonista, remoendo insistentes e abstractas elucubrações sem meta à vista. A voz inimiga (i.e. interior) dissertava sobre um tema que lhe era particularmente caro. No final, num assomo de despojada sinceridade, rematou com a seguinte afirmação, entre todas a mais certeira alguma vez tecida sobre tão delicado assunto: "Nunca serás feliz!" Instantaneamente, baixando as defesas, ele caiu nos braços da voz inimiga, afinal a sua única e verdadeira amiga: por lhe compreender e negar-se a camuflar-lhe a dor, por poupá-lo a mentiras piedosas. Pôde assim, nas voltas subsequentes, desapertar um pouco o garrote de um velho mito. Cessariam buscas, cessariam projecções para esse amanhã (convictamente, qual mandamento, sabia-o agora) que nunca haveria de alcançar.
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Patti Smith says hello

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foto de Gerard Malanga
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Eterno limbo

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Elliott-Erwitt, Pittsburgh (1950)

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Nasci com a morte. Nasci da morte para a morte. Vivo com a morte, desde cedo, acho que desde sempre. Vi a morte bem de frente e cresci na sua devastação. Roubou-me a vida e deixou-me um bocado de rocha onde me isolar. Não poucas vezes glacial. Da primeira vez, senti-a ao abrir os olhos, depois do desmaio. Não a senti chegar, entrou em mim, imagino que de rompante, sem aviso, sem pedir licença (nunca pede) e quis levar-me. Apercebi-me sim (como havia de não me aperceber? aperceber é eufemismo gorado) da sua saída tempestuosa, semeando estragos, revirando tudo de pantanas, infligindo caos ao meu pequeno grande mundo. Sem pedir licença (nunca pede), levou-me quem amei, quem amo, desde criança - o que equivale a dizer que levou boa parte de mim. Por sorte (?) sobrevivi, tenho sobrevivido: morto, apagado, isolado, com as marcas bem vincadas da sua passagem. Desde então sinto-a todos os dias, a morte. Vigiamo-nos, entre o recato e a insinuação torpe, como velhos companheiros ou velhos inimigos que não se esquecem. O seu olhar frio, cínico, gela-me as emoções, obriga-me a desprezar a vida. No seu piscar de olhos parece querer sugerir que tem ao seu alcance o derradeiro alívio. Uma fracção de segundos, apenas, quase intemporal, e o seu poder, ao longo dos anos, não cessa de se multiplicar. As coordenadas todas em fuga. A sua inscrição no código genético de todo um lar, de toda uma existência. Uma criança não volta a ser a mesma. Faz-se adulto, mas paralisado num eterno limbo: entre o desejo de que ela venha de vez ou que o deixe em paz, o deixe apreciar um pouco isto aqui. Mas ser-se incapaz de transpôr o limbo, esperar dia após dia pelo dia seguinte para voltar a insistir, para renovar o esforço e o resultado ser sempre o mesmo - resvalar - só traz uma coisa: o cansaço. Conheço o cansaço e ela sabe disso.
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sexta-feira, maio 04, 2007

Pantha du Prince - This Bliss (2007)

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Nuno Galopim sobre Pantha du Prince, na secção DN Artes de hoje. Ao nível do melhor que a cena electrónica tem produzido. Quanto a mim, quase quase tão bom como o Last Resort do Trentemøller. This bliss, in deed. To be shared. "Asha", faixa nº1.
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quinta-feira, maio 03, 2007

Fósforo no condicional [2]

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Se fósforo fosse um verbo, só poderia ser empregue no condicional. Um fósforo não tem futuro, pois cinza já designa outra coisa. E um pedaço de madeira, encabeçando o seu próprio arsenal de destruição, convivendo com essa eminência, não pode ter passado nem presente. Para ele, o tempo não é uma linha ininterrupta, mas apenas um ponto, sem conexões, isolado de tudo. Paradoxalmente só se salva, por instantes, o condicional, pois enquanto arde consome-se/multiplica-se (salva-se) em fumos e brilhos voláteis. Tão voláteis que só a imaginação os persegue.
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Fósforo no condicional

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Vejo um rosto e penso: sim, poderíamos ser amigos, quem sabe se até mais que isso, quem sabe se inclusivamente felizes... Mas o rosto passa e nada se passa. E digo cá para mim: já só sei pensar no condicional. Penso como quem pisca e esfrega os olhos e nunca acredita no que vê, porque todo o efeito entrevisto é passageiro. É óptica que nada dá a ver nas suas grossas lentes bifocais. É mancha impressa na retina, uma hipótese formulada entre mil. E sei o tempo que demora a apagar-se o fósforo que apenas eu vi acender-se: tempo de remoer entranhas, tempo de cólicas soletrarem ventrais solidões.
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Um pouco de céu na retina

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Dois olhos celestes avançaram direitos a mim. Azuis como o azul nos padrões do top Benetton. Avançaram direitos a mim e eclipsaram-se bem lá no fundo, na longa fila das cantinas.
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