Da (felic)idade
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Enroupado, em virtude de um ligeiro anúncio de gripe sob forma de varridelas de frio, envergando monocromaticamente dos pés ao pescoço roupa exclusivamente preta (isto para absorver tudo quanto lhe chegasse desse esplêndido sol das tardes de Maio); os cabelos desgrenhados oscilando como farrapos; curvado pelo hábito, pelas (poucas) horas de trabalho; assim caminhava ele à volta do jardim. Não obstante as modalidades harmoniosas veiculadas na luz, nos sons, o ambiente parecia-lhe algo irrequieto. Corria uma leve brisa, que no entanto dir-se-ia incapaz de motivar tal impressão. A folhagem de lírios ladeando o passeio, assim como a das roseiras apoiadas ao longo do muro, respondiam de forma agitada, mais do que seria supor, como se à passagem daquele vulto negro lhe advinhassem o vendaval de pensamentos. Completava voltas e mais voltas, sem abrandar nas curvas como um obstinado maratonista, remoendo insistentes e abstractas elucubrações sem meta à vista. A voz inimiga (i.e. interior) dissertava sobre um tema que lhe era particularmente caro. No final, num assomo de despojada sinceridade, rematou com a seguinte afirmação, entre todas a mais certeira alguma vez tecida sobre tão delicado assunto: "Nunca serás feliz!" Instantaneamente, baixando as defesas, ele caiu nos braços da voz inimiga, afinal a sua única e verdadeira amiga: por lhe compreender e negar-se a camuflar-lhe a dor, por poupá-lo a mentiras piedosas. Pôde assim, nas voltas subsequentes, desapertar um pouco o garrote de um velho mito. Cessariam buscas, cessariam projecções para esse amanhã (convictamente, qual mandamento, sabia-o agora) que nunca haveria de alcançar.
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2 Comentários:
A decepção é uma droga, mas não o será também a desesperança?
Talvez a esperança, a ser uma fonte de energia, seja mais renovável do aquilo que por vezes julgamos. Não podemos vaticinar-lhe o fim só porque não a vemos, não é? Ela renova-se... renova-se sempre. Beijinho grande, amiga!
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