domingo, julho 30, 2006

Aproveitar a vida a cada segundo que passa...

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Máxima que só faz sentido se na prática não resultar de uma disposição direccionada para tal. A partir do momento em que se verifica um esforço da nossa parte nesse mesmo sentido, a consciência dessa atitude esforçada aliada à noção de passagem temporal e da nossa própria finitude parecem inviabilizar que se tire partido, de uma forma natural, do que quer que seja.
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Definições idiossincráticas:

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Amigo – aquele que, a par de reconhecer com a devida justeza e medida as nossas virtudes, não recua ante a tarefa construtiva de nos apontar as falhas.
Inimigo de si mesmo - o indivíduo que em si mesmo se foca quase exclusivamente nos próprios defeitos e que faz conjugar nesse enviesamento do olhar, nessa má angulação diante das várias faces do prisma, a ocultação das suas qualidades.
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O amor não escolhe idades

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Pode bater à porta de qualquer um, seja em que idade for. Já as idades, essas, escolhem os amores. Geralmente, segundo um processo de selecção electiva dentro dos limites da mesma faixa etária. O que no entanto não pode ser assumido como regra, visto que o amor, pela sua imprevisibilidade, não se deixa facilmente cingir por ditames.
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The Arcade Fire "Neighborhood #3 (Power Out)"

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Neighborhood #3 (Power Out)
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I woke up with the power out,
not really something to shout about.
Ice has covered up my parents hands,
don't have any dreams don't have any plans.
I went out into the night,
I went out to find some light.
Kids are swingin' from the power lines,
nobody's home, so nobody minds.
I woke up on the darkest night,
neighbors all were shoutin' that they found the light.
(We found the light)
Shadows jumpin' all over the walls
some of them big, some of them small.
I went out into the night.
I went out to pick a fight with anyone.
Light a candle for the kids,
Jesus Christ don't keep it hid!
Woohoo! Woohoo! Woohoo!
Ice has covered up my parents hands,
don't have any dreams, don't have any plans.
Growin' up in some strange storm,
nobody's cold, nobody's warm.
I went out into the night,
I went out to find some light.
Kids are dyin' out in the snow,
look at them go, look at them go!
Woohoo!(3x) WOO! Woohoo!(3x)
And the power's out in the heart of man,
take it from your heart put in your hand. (hand)
What's the plan? What's the plan?
Is it a dream? Is it a lie?
I think I'll let you decide.
Just light a candle for the kids,
Jesus Christ don't keep it hid!
Cause nothin's hid, from us kids!
You ain't foolin' nobody with the lights out!
Woohoo!(2x)
And the power's out in the heart of man,
take it from your heart put in your hand.
And there's something wrong in the heart of man,
Take it from your heart and put it in your hand!
(hand!)(the lights out!)(hand!)(right now!)(hand!)
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* single do álbum Funeral (2004).
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sexta-feira, julho 28, 2006

Quando é que o rapaz muda de K7? Analogia de formatos/suportes.

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À pergunta insistente da prima e de outros familiares “Então e quanto a flirts? quanto a amores?...”, o rapaz sentia-se duplamente mal: em primeiro lugar porque aquele capítulo da sua vida tardava em arrancar e em segundo pelo chamado efeito K7. Duplo efeito K7, aliás. Quer pela pergunta, quer pelo teor invariável da resposta, que de tão repetitiva e maçadora, fez com que o rapaz encarasse seriamente a possibilidade de um upgrade em termos de suporte. Se não lhe era possível mudar de K7, ao menos que transmitisse a mesma mensagem (que parecia estar para durar) via CD. Portanto, num registo de qualidade superior e mais duradouro, tornando mais que obsoleta a tarefa de rebobinar a K7 até à degradação do registo magnético (o que implicaria o esforço descomunal da gravação de uma nova K7). Havia pelo menos um senão: a tentação de recorrer ao álcool para limpar as poeiras depositadas à superfície do CD ou, num caso mais extremo, iludir-se a remediar o que já não tinha remédio: passando o álcool vezes sem conta sobre os inevitáveis riscos que ocorrem em maior ou menor profundidade.
Porém, é pura ilusão crer que um simples upgrade possa melhorar seja o que for. O problema de fundo persiste e as vantagens de um novo suporte são pura e simplesmente cosmética hi-tech. Desemboca tudo no mesmo, com uma ligeira reformulação da desesperante pergunta: “Mas quando é que o rapaz muda de CD?”.
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Mudez. Formas alternativas de nomeação...

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(retirado daqui)

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...do vocábulo essencial.

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Morrissey - The World Is Full Of Crashing Bores (Live)

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The World Is Full Of Crashing Bores
(live)
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You must be wondering how
The boy next door turned out
Have a care, but don't stare
Because he's still there
Lamenting policewomen policemen silly women taxmen - uniformed whores
They who wish to hurt you, work within the law
This world is full, oh oh, so full of crashing bores
And I must be one, 'cos no one ever turns to me to say:
Take me in your arms, take me in your arms, and love me
You must be wondering how
The boy next door turned out
Have a care, and say a prayer
Because he's still there
Lamenting policewomen policemen silly women taxmen - uniformed whores.
They who wish to screw you, work within the law
This world is full, oh oh, so full of crashing bores
And I must be one, cos no one ever turns to me to say:
Take me in your arms, take me in your arms
And love me, and love me
What really lies, beneath the constraints of my head
Could it be the sea, with fate mooning back at me
No it's just more lock jawed pop stars
Thicker than pig shit, nothing to convey
They're so scared to show intelligence
It might smear their lovely career
This world, I am afraid, is designed for crashing bores
I am not one, I am not one
You don't understand, you don't understand,
And yet you can take me in your arms and love me, love me and love me (...)
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* do álbum You Are the Quarry (2004).
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quinta-feira, julho 27, 2006

Entre destroços... um vocábulo essencial

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Rick Harrison, Kirkstall Abbey, Leeds (I.R.)


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Perdido na decifração do seu mapa pessoal,
sem crenças esotéricas ou relação com o que se diz astral,
sem nenhuma paciência para exegetas que gizam
os humores de estrelas extintas há anos-luz...

Sem acesso directo ao bairro dos concílios familiares,
ocupado a tempo inteiro a desimpedir a via dos afectos,
descartada a hipótese de algum dia vir a resgatar
a morada antiga de entre os escombros numerados...

Resta-lhe respigar nos escolhos regressivos da memória,
o que porventura sobrou de um vocábulo essencial,
porém esquecido num léxico fatalmente mais restrito;
indagar com a frieza de um exame médico se perdas houve,
que tipo de reacção a pronúncia do longínquo verbo amar
nele ainda pode despoletar antes de prescrito o cautério.

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26 & 30/8/2005


Alteridade

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I

Um fosso enorme entre mim e os outros:
intransponível - no qual volto a esbarrar
sempre que os nossos caminhos se cruzam.


II

Ninguém sabe ao certo
o que faz de si
o eleito de si próprio,
nem o que o distingue
do abismo
que é a alteridade.

É-se desconhecido de si

e do outro.
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6/7/2003


Mazzy Star - Fade into You

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Fade into You
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I wanna hold the hand inside you
I wanna take the breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth
You live your life, you go in shadow
You'll come upon and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Close your eyes with what's not there
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
The strange light comes on slowly
A stranger's heart is out of home
You put your hands into your head
And your smiles cover your heart
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* single do álbum So Tonight That I Might See (1993), o 2º da lamentavelmente escassa discografia dos Mazzy Star.
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quarta-feira, julho 26, 2006

O inquilino





(foto de Claudio Meier)




I

Ainda não me reconciliei com o inquilino que me assombra.
Tão depressa rejeito o ser que em mim antevia esboçar-se,
correndo em direcção contrária à desejada, ou talvez
atrás do vulto cuja sombra intuía menor, quanto
me arrojo por terra a pedir que regresse...

Na senda infrutífera passou esfumando-se
uma possibilidade de mim eternamente adiada.


II

Muito me questiono se será dádiva ou castigo
reconhecer-se a pessoa que se presume ser
entre tantas e tantas, que de tão fugidias
nem uma só se logra tocar.


III

Brumas revolvem a resposta final.
Do ricto da sua bocarra
finda o apelo à congregação de facetas:
unânime na confirmação do despejo do inquilino.


8/7/2003-2004


terça-feira, julho 25, 2006

Metric - Poster of a girl

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Poster of a girl
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Can't stand by myself
Hate to sleep alone
Surprises always help
So I take somebody home
To find out how I feel
Feel like just a baby
Portrait of a lady
Poster of a girl



Je sais que tu n'aimes pas ta réalité
Tu sais que tu n'aimes pas ta réalité
Tu sais que je n'aime pas ma réalité
Je sais que tu n'aimes pas ta réalité
Tu sais que je n'aime pas ma réalité
On ne peut pas fabriquer la vérité
Tu sais que tu n'aimes pas ta réalité
Je sais que tu n'aimes pas ta réalité



Satisfy myself
Avoid beginners
Who long to shut my mouth
Till I take one of them home
'Cause I know how it feels
Filling in the blanks
Looking on the bright side
When there is no bright side
Coming in your pants
For the off chance
With a... poster of a girl



poster of a girl (4 x)


Je deteste dormir sans une présence
[
Les surprises semblent alléger ma solitude
Alors je ramène quelqu'un dans mon lit
Afin de découvrir comment je me sens
Comme un bébé
Portrait d'une femme
]*
Affiche d'une fille
Portrait d'une femme
Affiche d'une fille

Me satisfaire
Eviter les novices
Ceux qui cherchent à me faire taire
Jusqu'à ce que je rentre avec l'un d'eux
Car je connais la sensation
De chercher le fil d'or

[
Et de ne jamais le trouver
Coming in your pants
Qui ne pense qu'à coucher avec une
fille d'affiche
Affiche d'une fille
Une fille d'affiche
]*
Potrait d'une femme
Affiche d'une fille

Tu sais que tu n'aimes pas ta réalité
Je sais que tu n'aimes pas ta réalité
On ne peut pas fabriquer la vérité
Je sais que tu n'aimes pas ta réalité
Tu sais que tu n'aimes pas ta réalité



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* single do álbum "Live It Out" (2005), o 3º desta banda sediada em Toronto.
* estas passagens não estão incluídas na versão vídeo-clip, que é mais curta que a faixa original.

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P.S.
- Quem costuma sair à noite certamente já notou que há cada vez mais rapariguinhas a querer à força toda (com recurso a maquilhagem, roupas rarefeitas...) aparentar outra idade, outra maturidade e sobretudo outras mundi-vivências. This song is dedicated to them. Principalmente os cinco últimos versos da 1ª estrofe. Tenham juizinho. (Desconhecia esta minha veia paternalista.)
- Numa pulsão umbiguista dedico a mim próprio os três primeiros versos da 1ª estrofe. E ainda reformulo um verso, também a pensar em mim: Plusiers fois, je sais que je n' aimes pas ma realité.
- The girl's name: Emily Haines.
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O caso hilariante do cegueta

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Estava a minha irmã parada (não interessa para o caso saber porquê) frente a uma loja em Lisboa, com um ar visivelmente cansado (também não interessa para o caso saber porquê, muito menos que uma tal fuga de informação chegue ao conhecimento da minha mãe). Nisto, um senhor de idade, que a avaliar pela espessura das lentes só podia padecer de miopia severa, aproximou-se dela. Fitou-a com uma expressão curiosa – efeito provável das lentes hiper-graduadas que reduzem os olhos a pontinhos minúsculos - e resolveu perguntar-lhe: “A menina está a dormir?”. Incrédula, ela apenas conseguiu acenar um lacónico não. “Ah! Mas parecia...”. Depois, rindo-se da sua própria tirada, acrescentou: “Eheh! A dormir em pé!”.
Aparentar cansaço é uma coisa, dormir é outra completamente distinta. (uau! foi preciso arranjar um blog para escrever um frase desta categoria). Já dormir em pé raia os fenómenos de outro mundo ou para não ir tão longe (por especular com mundos longínquos é que a vida de Giordano Bruno neste mundo terreno foi "abreviada" à força...) teria potencial para figurar entre uns quantos números aberrantes numa feira de variedades em qualquer arrabalde de província.
Pois bem... Não acham hilariantes as motivações (é certo que bem-intencionadas) de um míope severo que, confiando a tal ponto (não digo “cegamente”, para não abusar da ironia) na sua performance ocular, se sente na obrigação de acordar uma pobre moça que segundo a sua “óptica” (sou tão mauzinho...) lhe parece conseguir o feito de dormir em pé?! Isto então é de um universo paralelo, cuja explicação deixo para os astro-físicos.
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(Mr. Magoo)

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O tal senhor (que por razões óbvias – repararam bem na imagem? - passarei de agora em diante a tratar por Mr. Magoo, em jeito de homenagem à personagem de animação), cegueta que é, lá foi à sua vida. Talvez às apalpadelas... quem sabe? E certas apalpadelas (sim, essas...) talvez se perdoam mais facilmente a um "pobre" cegueta (pobre entre-aspas, pois que acabei de anotar que usufruem de certos privilégios de classe).
Ainda assim, enquanto se afastava e como não ficasse convencido, o Mr. Magoo não resistiu em lançar nova vista de olhos para trás, talvez na crença de tornar a apanhá-la ferrada no sono, isto apesar do curto hiato de tempo decorrido.
O verdadeiro Mr. Magoo também era teimoso que nem uma porta e irredutível na sua versão dos factos, mas ao menos tinha a atenuante de não usar óculos e de não ter consciência da sua condição. Fosse defeito dos óculos ou não, o tal senhor proporcionou-nos (pelo menos a mim e à minha irmã, quanto aos meus leitores não estou certo disso) um daqueles episódios hilariantes ao nível dos da personagem de animação - o Mr. Magoo que ao longo da minha infância me apresentou ao fascinante mundo do non-sense e cuja evidente falta de orientação o conduzia quase sempre por caminhos esconsos, por peripécias perigosas que admiravelmente acabavam sempre bem, como quem escreve, ou neste caso mais a propósito, como quem anda a direito por linhas tortas...
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P.S. . Espero ter conseguido captar nesta exposição a graça original do episódio e de não ter de reformular o título para: “O caso a que apenas eu e a minha irmã achámos piada”.
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Gágágáehihihgágáeheh

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(Yoshimov, Shop)

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Num hiper-mercado, uma senhora conduz um carrinho de bébé. Sentadinho, todo sorridente e a gesticular, vai o filhote. Na sua linguagem criptada – gágágáehihihgágáeheh - certamente que lá vai ensaiando o bê-á-bá para futuros piropos. A mãe enfastiada até à ponta dos cabelos (pretos, longos e sedosos – o chamado entre-parênteses efabulatório) repreende-o desta forma: “Ó... não sabes dizer mais nada?!”. Mas a linguagem criptada continua em todo o seu esplendor. Efabulei cá para mim: se calhar é um bebé-prodígio que se aplica no seu aquecimento vocal - gágágáehihihgágáeheh – para depois começar a recitar Camões... coisa que a mamã aguarda impacientemente, farta que está desses aquecimentos preliminares.
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(daqui)

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Perdi-os de vista e claro que não segui a rota de ambos para ver se o filhote lá conseguia debitar o “Descalça vai para a fonte...” Não sou assim tão cusco e quanto a mini-perseguições estamos conversados: fiquei-me apenas pela Miss Nice. Por acaso ainda ouço uma vozinha a sussurrar qualquer coisa como: “get a life!”. Dizia eu... apesar de não ser assim tão cusco, fiquei a matutar um pouco sobre o assunto (só um pouco porque a minha vida não é mesmo isto...) e se não encontrei respostas formulei perguntas q.b para quem quiser responder por mim. Eis algumas:

- relação mãe/filho ameaçada por falta de diálogo ou por se expressarem em idiomas diferentes?

- um caso precoce mas ainda assim ilustrativo do generation gap?

- mais um caso de pressão parental para que os filhos cumpram os altos desígnios que deles se esperam?

- terá sido aquele episódio a gota de água que a levou a dirigir-se à secção dos livros com a vã esperança de encontrar o “Descodificador dos Anjos e Demónios”?

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P.S. Atenção que não aceito um gágágáehihihgágáeheh como resposta! (data e hora da postagem original: 23/7/2006 - 16:05)

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Adenda:

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(daqui)

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Certamente que não vos passou despercebido o facto de se tratar da mesma criança nas três fotos. Urgia fazer desta feliz coincidência matéria conclusiva para este post.

Na 2ª foto: suponho que esteja a memorizar o "Descalça vai para a fonte...". Porque não um japonês a recitar Camões?!

Na 3ª foto: ostenta em letras garrafais e em caps lock uma das respostas possíveis (não direi que tendenciosa, ou que a versão da criança é suspeita de parcialidade, pois não creio que tenha havido tempo suficiente para ela apreender a arte da duplicidade, apanágio de idades mais tardias) que nenhum comentador ousou dar (não obstante os mui valorosos contributos que mui apreciei)...

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segunda-feira, julho 24, 2006

One way out from the...

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(Fernando Moraes,
Trilho no deserto )
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... the desert. Is it not what we all want?
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Angústia, antecessora da escolha

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(Cláudio Roberto, Paranapiacaba encruzilhada)
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Ermo ou encruzilhada,
deserto que se bifurca
em profusão de rastos
por diferentes vias,
onde só por ilusão
os dilemas se mitigam.

Optar é interditar-se
o acesso a lugares:
miríficos? ilimitados?
É cingir-se à escolha
de uma miragem,

que depressa o tédio invade?...


27/8/2003


Notas soltas sobre o concerto

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Já no interior do Pavilhão Atlântico, pouco antes de subirem ao palco os Vicious 5 (banda lisboeta que com boas guitarradas cumpriram a primeira parte), um senhor tentava vender uns pacotitos de pipocas. Aparentemente sem grande sucesso. E porque será? Requisito as vossas mentes por uns segundos, para que formem a seguinte imagem mental: imaginam alguém a comprar pipocas para daí a instantes estar aos saltos a curtir a música, a levar encontrões e a espalhá-las como confetti? As pipocas supostamente só saltam uma única vez: no momento da confecção e ponto final. Boa veia empresarial, apurado sentido pró negócio! Estou a ser mauzinho...

Os Pixies não surpreenderam, mas também não ficaram aquém das expectativas. Deram o 4/5 de litro. Mas havia alturas em que parecia estar a rever o DVD. Como encore tocaram o “Here comes your man”. Um pouco à minha frente reparo que um rapaz ao beijar a namorada lhe dá a prova irrefutável disso mesmo.


Quanto ao pós-concerto, convém ser mais lacónico. O zumbido nos ouvidos a afectar certas zonas do cérebro suscitaram algumas variações em torno do nome Pixies: Pixels e Pickeles e Pisces (atenção que é um termo inglês...), etc. Seguiu-se uma semi-noitada no Bairro Alto, com pouco álcool e muitas deambulações por entre ruas...
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domingo, julho 23, 2006

De Fábio H. L. Martins

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1ª Carta do Alinhavar
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Lúcia:
fujo aos meus usuais lugares comuns, à minha familiar e inocente hipocrisia e não começo por inquirir aos céus se te lembrarás de mim. Aliás, talvez até melhor se adequasse à tua memória um início de mensagem tímido, fácil e fugidio. Não deixa, contudo, de ser risível, que tendo eu partido para esta secretária na tentativa de expurgar de mim toda a minha habitual covardia, tenha começado precisamente por utilizar um verbo que me é tão penoso e tão bem me ilustra; em primeiro lugar a meus olhos, depois, se a mais alguns (e cá estou eu a não dar por certas as mais irrefutáveis verdades), evidentemente aos teus.
Nesta altura sinto que contrariamente a toda a minha vontade te deixei bem no meio do meu turbilhão mental. Nunca foi minha capacidade tornar a minha mente inteligível e o meu pensamento fácil de acompanhar. Felizmente não sinto que essa incapacidade alguma vez tenha reflectido uma real desordem da minha consciência. O que aparento de caos, acredita, não tem correspondência na minha real essência. Terão sido talvez o medo, a fuga, a hesitação que sempre mascararam a minha imagem. E como queria que assim não fosse.. Sabes como tive uma infância feliz, sabes até como era olhado como prodígio pelas habilidades simples pelas quais me habituei a ser admirado. Não terá sido aí que alguma coisa falhou.
Não te escrevo para me redimir de nada do que sou, do que me fiz e com isso eventualmente te tenha feito. Perceberás adiante, que na verdade nem sequer te escrevo. Terei mesmo legitimidade para questionar se de facto escrevo. Não, não deliro nem tento aludir à minha longa ausência para poeticamente invocar a inexistência. O que quero dizer é que talvez não possa afirmar que TE escrevo se parcas são as possibilidades de vires a conhecer estas linhas. Sendo a motivação pela qual redijo a de delinear uma carta para ti, compreenderás agora, que ,em suma, não sinta que de facto escrevo.
Talvez seja por isso que todo o pensamento tome forma tão descuidado, tão livre. Sabe bem, conceder-me agora a liberdade de escrever o que me aprouver. Nunca, como nesta situação, o atroz egoísmo que me morde o espírito me fustigou menos.
Lembrar-te-ás de mim, por certo, como um rapaz sonhador, um jovem idealista e um projecto de homem progressivamente acanhado e escondido por trás do pressuposto social. E com propriedade o fazes. Se é certo que acredito que ninguém em sã consciência poderá livrar o peito da opressão causada pelos próprios defeitos, não menos verdade o é que, ainda assim, a maioria de nós sente capacidade suficiente para julgar os outros e desdenhar das suas imperfeições. Acho que isso se deve fundamentalmente à facilidade com que cada um de nós dá absolvição aos próprios actos. Mas dar-lhes absolvição não significa esquecê-los, talvez atenuá-los e muitas vezes nem isso. Eu vivo incomodado com os desvios que tomo em relação à minha vontade, e quando a esta cedo, algumas vezes me atormento por me achar (e me tornar, de facto) egoísta e presumido. Percebes agora se te falar em desorientação?Habituei a proteger-me sob a égide da loucura. Pensava para mim - “estou a endoidecer”-, e percebo agora como teria sido escarnecido se alguém de alguma forma me adivinhasse o pensamento.
Tenho necessidade de escrever como se fosse uma pessoa importante, o que na verdade sou... para mim mesmo. Sinto-me sempre a pessoa mais importante do Mundo, não me esquecendo, contudo, mesmo não tendo em conta a concepção do Absoluto, mas apenas do ponto de vista do senso comum, que não tenho a mínima importância. Que importaria ao Universo que eu nunca tivesse nascido? Que importa Demócrito, que importa Platão, que importa Picasso? Que importam se o Tempo não parará até parar definitivamente?
Comunico-te que decidi soltar as amarras, no sentido lato e literal.Vendi a casa que conheces, os carros, a bicicleta, as acções e a maioria dos bens que 19 anos e 11 meses de vida hospitalar me permitiram adquirir. Não foi fácil, como podes imaginar pelo conhecimento que tens do meu apego às coisas “insignificantes”.
Com parte desse dinheiro comprei um barco em vésperas de afundamento. Preferi assim, pois pude passar os últimos seis meses a ressuscitá-lo e a fortificá-lo. Além de assim me ter ficado por quase metade do preço, ainda tem a vantagem de, dentro de certos limites, estar como eu o idealizei. Chamei-lhe “Lua”, depois de várias hipóteses que me pareceram ocas. Como sabes sempre tive uma inexplicável paixão pelo mar, e apesar de pouco saber dele e menos ainda de como se pode dominá-lo (ou deverei escrever, “de como evitar que ele me engula”?) aventuro-me a dissecá-lo devagarinho. Finalmente tirarei o pó ao diploma do curso de navegação que fiz à tanto tempo. Parto sem rumo, e imagino-te a chamares-me insano ao saberes que propositadamente parto sem qualquer noção geográfica. De propósito evito quaisquer mapas e levo apenas uma bússola. Tenho todo o Tempo ao meu dispor, o combustível que me foi possível armazenar e conto com os favores do vento para quando este se acabar. Para que se torne tudo mais claro digo-te que não pretendo voltar a terra. Jamais!
Não se trata de um suicídio como a esta altura, se lesses esta carta, poderias estar a pensar.
Opto por uma outra forma de vida, com coragem, para que, quando esta me faltar, eu saiba que é porque já a tive.
Como te disse, solto as amarras que aqui já me envolviam com tanta lassidão que tudo o que faziam era quitar-me movimentos mais amplos.
Se me permites a inconsequência de te chamar amor: meu amor, parto feliz, e em mim sinto subir a adrenalina a níveis que não me lembro de ter subido antes. Do azul para dentro tudo parece poder ser meu.
Se a viagem for curta, seja pelo que for que a interrompa abruptamente, não terei sobre os meus despojos um epitáfio que assinale o que fui ou para quem fui, mas parto com a viva esperança de com o meu leme poder rasgar na água uma mensagem que só eu poderia ler se um dia trocasse o azul revolto dos mares pelo azul esbatido e tranquilo dos céus.
Se estás curiosa em relação ao que levo comigo, digo-te que além do indispensável, levo a máquina de escrever, papel, lápis e todos os rascunhos meus que tinha guardados. Não evitei seleccionar alguns livros, duas almofadas, 23 fotografias, algum tabaco, um frasco vazio de um perfume teu, o Mischa (aquele velho peluche azul), o telemóvel (?), gin, vinho do porto, água tónica e uma quantidade considerável de copos.
Questionarias porque menciono os copos, não questionarias? Porque lhes destino uma função bastante diferente daquela para a qual existem. Desde que decidi partir, percebi que me seria impossível perder todo o contacto com os que cá ficam. Como também me agrada manter a liberdade de escrever assim descuidadamente, e porque, uma vez escritas, as cartas não mais farão sentido perto de mim, decidi lançá-las às marés em copos. Compreendes assim que seja impossível que venhas a ler esta ou as próximas mensagens que te destinar. Exclui as garrafas por uma simples questão volumétrica, de economia de espaço.
Esta é pois a primeira carta que te escrevo desde há 8 anos, a última que te escrevo em terra.
Parto amanhã e ao fim da tarde lanço o meu primeiro copo!
Adeus!
Sérgio
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Alinhavar, 12 de Setembro de 2002
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P.S. . Mais do que a longa amizade (com as ausências intermitentes que a distância e as vicissitudes da vida por vezes criam e que de lado a lado, sem querermos, tacitamente vamos consentindo), o que sobretudo me leva a recomendar o blog deste meu amigo - The Dirty End Of Winter - são as verdadeiras pérolas que lá se podem encontrar e de que este belíssimo texto é exemplo. Respira-se lá o que de melhor a vida tem para oferecer: sentimentos verdadeiros.
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sábado, julho 22, 2006

O “get a life” antes do concerto dos Pixies

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(daqui)

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Sentados, à espera do metro, comecei a cantarolar para a minha irmã – tadinha! - alguns dos refrões mais badalados dos Pixies. Ela deve ter julgado que eu pretendia estragar antecipadamente todas as expectativas que ela alimentara em relação ao concerto. Confiei que o volume de som estivesse devidamente ajustado para que apenas ela – pobre cobaia! - me conseguisse ouvir. E como é óbvio, confiei mal. Porque nisto passa uma rapariga que por instantes fixa os olhos em nós. Imagino que com um ar intrigado de quem se interroga “Será que é mesmo daqui que provêm estes grunhidos?”. Depois da confirmação que sim senhor eu era a fonte de poluição sonora, ela lá conseguiu (não sei como) seguir a sua rota sem aparentar grande constrangimento. Há pessoas com nervos de aço!
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(daqui)

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Quando o metro chegou, calhou entrarmos na mesma carruagem. Chegados à gare do Oriente, resolvemos armar-nos em detectives e seguir a rapariga. Ah pois é! Escutar os grunhidos do Cláudio paga-se caro! Mais caro do que entrever o Papa em underwear!

A todos os temerários que já não receiam autos-de-fé (atenção que eu não garanto ao estimado leitor - que neste preciso momento se encontra à beira de pisar solo sacrílego -, que ele não venha mais cedo ou mais tarde a fazer-me companhia na incómoda situação representada na figura aqui em baixo: presos a uma estaca e igualmente em underwear - ironicamente o objecto detonador de toda esta trama - em vias de representar publicamente o desditoso número da tocha humana)

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dou-vos a oportunidade de embarcarem comigo nesta barca infernal que é a imaginação e remar em direcção (infelizmente para as nossas mentes, trata-se de uma via sem retorno) a uma das mais sacrílegas imagens mentais que em má hora concebi - a do Papa em underwear:

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+

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=
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Pronto, mais um anátema para a colecção! Este blogue já deve fazer parte dos excomungados... Repararam no contraste branco/preto e na largueza do underwear? Grrrrrh... spooky! Sobreviveram à jornada? O meu cérebro depois disto parece ter ficado com sérias sequelas. Paga-se mesmo caro uma tal afronta... e os danos reflectir-se-ão provavelmente em futuros posts. Adiante.

Esta nossa saga detectivesca veio mais ou menos no seguimento do que tínhamos estado a falar acerca do tema “Get a life!” (para os rapazes e o mundo L existe também a variante “get a wife!”). Em bom português o tema tem o seu correlativo: “Não tens vida própria?”. A expressão aplica-se a todos os súbditos do nefando império da coscuvilhice, aos acólitos dos reality shows e dos tablóidescos gossips, que da realidade só retêm mesmo o espectáculo e o fogo-fátuo.

Quero deixar bem claro que foi a nossa estreia nestas andanças, que isto de seguir pessoas não entra na categoria dos hábitos e paranóias familiares. Justificações para uma tão estranha atitude? Aqui elenco algumas, sem querer penitenciar-me: uma pessoa que vai a um concerto tem que preparar minimamente a sua veia transgressora (uma veia ligeiramente dilatada nunca fez mal a ninguém); o fare niente enquanto não se chegavam as horas do concerto (claro que há formas mais interessantes de ocupar o tempo); o desejo de por instantes dar largas ao
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que pulsava dentro de nós... Mas como é que é, hein? Uma pessoa tem que arranjar justificações para tudo? (pergunta retórica que não passa de uma fuga para a frente e que à sua maneira também funciona como justificação, passe a redundância).
Quanto à rapariga – a beleza, o top rosa, a mochila Nike* e o ar simpático que emanava dela, valeram-lhe o epíteto Miss Nice – seguimo-la durante uns minutos ao longo do Centro Comercial Vasco da Gama e por respeito à sua privacidade de mastigação e de deglutição deixámo-la em paz quando resolveu fazer uma pausa para lanchar.
No final desta mini-perseguição policial chegámos aos mesmos pressupostos: que é relativamente fácil uma pessoa embrenhar-se na vida alheia e descurar a nossa (fazer pela vida - pela nossa, claro está - dá mais trabalho, não é?), que a vida dos outros parece sempre mais entusiasmante (mas o que parece nem sempre é) e que se deixássemos, o “Get a life!” também se nos podia colar na perfeição... .
* Lá teve a minha irmã que gramar com uma pequena nota de erudição e vocês, que agora estão a mesmo a jeito, também não escapam: Niké - deusa que na mitolgia grega personificava a vitória. O facto de representar o espírito triunfal e por ser capaz de correr e voar a altas velocidades influíram sem dúvida na escolha do nome para a marca de calçado/vestuário desportivos hoje mundialmente conhecida.
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(baixo relevo da deusa Niké em Êfeso)
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sexta-feira, julho 21, 2006

Novelo sem saída

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Alguém me diga que me chamo Teseu...
pois ainda não me reencontrei
no novelo de que sou feito,
nem ao menos a linha salvífica por que guie
o recomeço das minhas buscas, enredadas sempre
em despedidas reticentes às portas do labirinto,
que intuo percorrido de ponta a ponta
pela tua miragem, ó Ariadne...

E a cada passo atiças contra mim
os mastins vorazes do passado,
tu que em sonhos por mais do que uma vez
me estendes a promessa de um novelo:
vieste de novo com o fito de sofrer
emaranhando-me em renovada prova do teu amor?
E agora saber qual deles o mais longo
e mais longe me levará no mito?
Se desfiasse o amor que me dedicas agora,
cada metro de linha contaria uma velha história
tão velha que no mesmo beco desembocaria:
na fuga para a ilha do teu abandono.

Alguém me diga que me chamo Teseu,
pois ainda aqui ressoa que apenas ele,
em o minotauro vencendo, se não perdeu...




É tanto o desfiar nesta babilónia,
que temo descurar o que na passagem há de belo,
em prol de algo indefinível que nem sei por que anseio -
vaga ideia de pega varonil com um monstro de cornos

(dizes-me que sem saída
dizima o tributo anual,
mas não o voluntarioso que eu seria
se descobrisse o caminho para a arena central).

O labirinto estreitou-se, tornou-se ermo.
Cansado por longos anos de espera,
de refregas, Astérion partiu por fim;
legou-me o posto que dissiparei,
como de Ariadne o amor
em mim dissipei.

8/7/2003
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foto 1 - Mosaico de Conimbriga, com labirinto e Minotauro.
foto 2 -
Teseu ferindo o Minotauro (Astérion).
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Sintonias

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Imagino que neste preciso instante
alguém esteja vertendo em verso
as mesmíssimas palavras que me afloram
mas que falho em dar-lhes
densidade corpórea.
Haveremos por certo de nos interpelar
e chegar a um consenso
que com idêntica precisão
sirva aos nossos intentos
de capturar o esquivo e quem sabe
o indizível,
divergindo apenas no percurso
(o que já é muito)
e no terreno a fecundar.
Nenhum de nós emitirá um só juízo, porém,
sobre as desmesuras acalentadas por ambos.


6/2003


quinta-feira, julho 20, 2006

Noites & ausências


I

A noite segreda a quem queira escutar
a palavra silêncio – o arame farpado
que rasga a carne em ansiosa fuga
em desolado abandono das trincheiras
onde fantasias ainda por formular
são enterradas vivas por morteiros.


II

Todas as noites às mesmas horas,
despia-se a casa dos acessórios,
desprendiam-se os quadros, as fotos,
tudo quanto era lembrança atávica,
para os poupar aos obuses da memória
que implodem com tudo até na arrecadação,
aí onde a tinta colorida dos dias amolece,
e a pasta viciosa rescende a desejo de posse,
a nudez insatisfeita em banho de escórias.


III

As paredes arrimam-se abrindo alas
ao sonâmbulo de braços erectos ao alto,
bússola norteando o rumo das noites
pelo vazio das casas inabitadas.


IV

Do lume brando sob os dias
o cansaço que não é de um só corpo;
as lentas macerações da alma incensória
com as florescências do mundo,
num derradeiro e verdadeiro luto
pela noite descida a meia-haste.


V

Anseio pelo gesto mínimo
pelo estritamente necessário
para dobrar o cabo da hora.


VI

Faróis da viatura Noite, carreira devoluta,
feixes de contemplação nas bermas sinistradas.

Como vim parar a este beco?
Trocou-me as voltas a noite?...


VII

O mar encapelado ordenava na dianteira
a frente de assalto às fragas da tua ausência,
os peões de um jogo sem consequência
revoluteando nas cristas das ondas
os estandartes com as quinas da dúvida:
se a espuma dissolvida reverteria
para a tua pálida figura.
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quarta-feira, julho 19, 2006

Livros: inscrição na carne

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Nas estantes acumulam-se pilhas de cd’s que ajudaram a preencher o silêncio das horas solitárias e livros que se amontoaram na razão inversa da disponibilidade para os ler. Quando percorro o olhar pelas badanas dos livros, revejo mentalmente não apenas os bons momentos que me proporcionaram, mas também as tentativas frustradas de lhes agarrar a narrativa, de decifrar o seu fio condutor. Por vezes, ainda sinto remorsos por parágrafos inteiros que ignorei e saltei, sem nomear as páginas que fiz desfilar à frente dos olhos, apenas para me entreter com o seu leve restolhar. Os livros sujeitam-se a tudo, a todo o tipo de manipulações, são amigos fiéis, sempre disponíveis a revelar os seus segredos. Por vezes deparamo-nos com frases espantosas que relemos compulsivamente até interiorizarmos cada palavra. Ecoam na nossa mente por longos instantes, julgamos que acenam para nós, que abarcam visões de outros mundos e que são capazes de nos conduzir até lá. Por fim copiamo-las para um caderno, como se selássemos um pacto secreto de mútuo entendimento, de eterna partilha e um sentimento de pertença aquece-nos à medida que as transcrevemos. Ao olhar de um estranho poderá parecer um gesto autómato, mas na verdade deixa de ser cópia ou mera transcrição para se constituir como duradoura inscrição na carne.
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Pixies "Where is my mind?"

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* live at Eurockéennes Festival: Belfort, France (2004).

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Respondendo à pergunta: my mind está praticamente num só sítio - no concerto de amanhã dos Pixies! Bora lá! Pavilhão Atlântico às 21:30.
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terça-feira, julho 18, 2006

Banhos de mar

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(tirado daqui)

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Os risos estridentes e os gritos de alegria das crianças na recepção do primeiro embate das ondas. Algumas sob o olhar vigilante dos pais, que sorridentes aprovam as suas investidas temerárias; outras, aparentemente entregues à sua sorte. Pequenas mãos que chapinham na água ondulante e salpicam todos em redor; ou que colhem conchas dos mais variados feitios à beira-mar.

Os adultos que molham lentamente os membros, como se de um ritual se tratasse: o de preparar o corpo para o mergulho. E quando por fim mergulham, afiguram-se-lhes incomensuráveis os instantes nesse mundo de profundezas e correntes, cujas leis lhes parecem estranhas.

Alguns corpos bóiam com total liberdade e lassidão à superfície do mar - um extenso espaço ondulante que parece ter vida própria -, como que embalados por uma mão que tivesse suspendido o tempo e tudo em seu redor.

Outros vêem formar-se as cristas de ondas prontas a despenharem-se sobre eles em fúria irreprimível. Desses, alguns ainda esbracejam inutilmente, mas acabam por se deixar levar nesse impulso quase primordial; outros são tragados num turbilhão de correntes instantâneas, para logo emergirem à superfície, inspirando sofregamente e sacudindo o seu espanto para longe.

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sábado, julho 15, 2006

Crepúsculo nas dunas

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(foto tirada daqui)

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O sol declinara e do seu leito rosado, um vasto lençol azul-escuro polvilhado de estrelas, descia lentamente sobre o céu. Deitado de costas sobre o areal, eu observava a transformação gradual que se operava na abóbada celeste, a subtileza com que os cenários diurnos e nocturnos se revezavam. No estado onírico em que me encontrava, e a que nesse dia particular me era possível predispor (dado que o meu espírito aparentava uma calma invulgar e parecia excepcionalmente ter-me decretado tréguas); assim imaginava que um espectáculo daquela envergadura, que a esplendorosa orquestração de mais um culminar diurno, teria forçosamente que ficar a dever-se ao esforço imenso despendido, dia após dia, por uma caterva de cenógrafos e aderecistas divinos. Mas com que finalidade? Para nosso simples deleite e fruição? Não, não podia ser apenas por isso... Ainda se se desse o caso de todos nós lhe darmos o devido valor. Mas o que é facto, é que tudo isso, tanta beleza (gratuita e mesmo assim desbaratada por tantos ingratos), na maior parte das vezes, nos passa irremediavelmente ao lado, tendo no máximo por recompensa um olhar fugaz e ausente num mundano regresso a casa. Desejava por isso acreditar que do último estrebuchar do dia, que dos seus derradeiros raios de luz, percutindo em pequenas ondas de calor, ainda retinisse um eco de esperança e de felicidade em muitos corações. Isto talvez por me sentir aflorado por quase inaudíveis ressonâncias, compósitas desse eco.

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Nick Cave and The Bad Seeds "(Are You) The One That I've Been Waiting For?"

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(Are You) The One That I've Been Waiting For?
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I've felt you coming girl, as you drew near
I knew you'd find me, cause I longed you here
Are you my desitiny? Is this how you'll appear?
Wrapped in a coat with tears in your eyes?
Well take that coat babe, and throw it on the floor
Are you the one that I've been waiting for?

As you've been moving surely toward me
My soul has comforted and assured me
That in time my heart it will reward me
And that all will be revealed
So I've sat and I've watched an ice-age thaw
Are you the one that I've been waiting for?

Out of sorrow entire worlds have been built
Out of longing great wonders have been willed
They're only little tears, darling, let them spill
And lay your head upon my shoulder
Outside my window the world has gone to war
Are you the one that I've been waiting for?

O we will know, won't we?
The stars will explode in the sky
O but they don't, do they?
Stars have their moment and then they die

There's a man who spoke wonders though I've never met him
He said, "He who seeks finds and who knocks will be let i"
I think of you in motion and just how close you are getting
And how every little thing anticipates you
All down my veins my heart-strings call
Are you the one that I've been waiting for?
Are you the one that I've been waiting for?
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* single do álbum The Boatman's Call (1997)
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quinta-feira, julho 13, 2006

Sala de espera no meio do nada

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Sorrimos um ao outro,
à linha que nos separa e que é tão ténue...
Contudo é mais fácil ceder à distância que se interpõe entre nós.

Prolongo a nossa ausência na extensão do descampado,
sonho na solidão desta vasta janela para o mundo.
Abarco com o olhar um cenário fictício de entrega,
mas os corpos quedam-se mudos, desprovidos de intenção,
sem um fulgor que desfie o emaranhado da espera feita torpor.

Um chiar de carris anuncia a despedida.
Nenhuma palavra veio selar o nosso estranho encontro.

Nenhum gesto meu deteve a tua partida...

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21/5/2003


quarta-feira, julho 12, 2006

Corredor sem grades

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(Chani Goering, Manikin - The Diminutive Form of a Man)

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O teu corpo adeja por um corredor sem grades.
A gaiola é estreita, imperturbável.
De nada adianta apoiares todo o teu peso num dos seus extremos.
Rebelião alguma induzirá a menor racha nestas paredes,
nem as tuas oscilações converterão a sua estrutura num pêndulo desgovernado.

Devias dar graças ao facto da portinhola se abrir para ti todas as manhãs,
ainda que na sua aparente inexistência seja de imediato assimilada.
Sossega pois a um canto, enquanto a mão te renova a água e o alpiste.
Confina os teus desejos a esta rotina, e louva-a com um dos teus velhos gorjeios.

Perdeste o canto? A penugem sem cor põe-te triste?
Deixa lá... tens uma gaiola só tua.

Ah, por isso mesmo? Não tens por quem cantar?
Por quem manter o viço das penas?

Mas vá lá, trina ao menos para mim...
Que sou quem sempre te renova a água e o alpiste.
25/9/2005


terça-feira, julho 11, 2006

Interioridades

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De ambos os lados do caminho-de-ferro sucedem-se os canaviais. Assemelham-se a vigias nervosos baloiçando ao sabor da brisa ligeira ou baluartes ressequidos a demarcar um extenso território virgem. A intervenção humana neste lugar recôndito restringe-se à estreita linha-férrea, que começa a acusar os sinais do tempo. As reivindicações dos vários elementos naturais começaram a ser atendidas: ervas daninhas vencem aqui e ali a aridez do cascalho, as tábuas pregadas aos carris apodrecem e o brilho metálico cede à ferrugem baça.
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So lone, so lone... baby, baby... *

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(Alexander Lowry - Lone Figure on West Cliff, Santa Cruz, California, 1988)
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* variante da letra original do grande tema "So long" de Perry Blake. Quem conhecer a melodia do refrão até pode cantarolar...

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segunda-feira, julho 10, 2006

Fish, temas piscícolas e saídas nocturnas

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No sábado à noite fui à Fish. Os meus poucos leitores que tenham paciência para aturar mais uma das minhas pequenas esquisitices, mas o puto da primária que há em mim não resiste a fazer este trocadilho muito, mas mesmo muito básico (ah! mas afinal o puto é do ensino básico): a Fish estava mesmo fixe! Estava mesmo.
Uma constatação: em Leiria, pelo menos duas discotecas travam concorrência entre si até ao nível dos nomes. A exemplificá-lo temos a Fish e a Sushi - ambos os nomes reportam a temas piscícolas e têm ainda em comum o "sh", como se à entrada quisessem mandar calar a clientela e fazê-la entrar ordeiramente... Se foi essa a intenção, hão-de ganhar muitos clientes com esse feitio!
À primeira vista, ou para ser mais exacto, à primeira audição os nomes piscícolas não me pareciam combinar lá muito bem com o espírito - os mais voluptuosos dirão carnalidade, mas não vamos entrar por essas velhas dicotomias... - do que é supostamente a night. Mas depois lembrei-me de algo que em tempos também um professor nos dizia (os profes ensinam-nos cada coisa...) e cheguei à conclusão que os nomes de temática piscícola assentam que nem uma luva nesses espaços de lazer. É claro que há nomes que assentam muito melhor, mas também não vamos por aí...
O que dizia esse professor? Mais ou menos isto: que nas saídas nocturnas, havia uma arte que não se podia descurar (pelo menos ele não descurava) - a arte de lançar ardilosamente a rede, esperando numa feliz ocasião poder recolher alguns dividendos. Por outras palavras: onde há mar há peixe! Não faço ideia se ele era ou não um "pescador" bem sucedido. A mim soa-me um bocado primária a analogia pescaria/engate. Não que eu esteja a apelidar esse profe de "primário", atenção. Na prática (infelizmente, não na minha) confirma-se que a analogia até tem razão de ser.
Brincadeiras à parte (se bem que quando se fala da night, as brincadeiras costumam ser a parte mais interessante), de resto em termos de ambiente e tipo de música, a Fish e a Sushi parecem estar quase nos antípodas uma da outra. Antípodas talvez seja exagero.
Focando-me na Fish... Funciona como bar/discoteca. Tem várias divisões que diferem entre si pelo tipo de música, ambiente, iluminação, disposição e tipo de cadeiras, sofás, etc... de modo a ir ao encontro de vários gostos, vontades, apetites e estados de espírito e/ou carnais (lá vem a velha dicotomia à baila). Gosto dessa variedade e de haver vários pontos de paragem à nossa escolha. Por exemplo, pode-se ir para uma ou mais divisões relativamente mais calmas para poder conversar (há até uma espécie de candelabros, quase à mesma altura das pessoas num determinado sofá, e que certamente já terão iluminado momentos muito especiais...) ou pode-se descer para o piso inferior e abanar o capacete ao som do house, numa pista de dança que só peca por ser relativamente pequena.
Resultado: saímos de lá às 5 horas da manhã.*
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P.S. . Pode parecer, mas este post não me foi encomendado pela Fish... Não, não é um spot publicitário, é mesmo um post.
* Estão à espera que eu divulgue os resultados da pescaria, não é? Pronto, ok. Vou ser sincero: nem sequer houve tentativa de lançar a rede.
E por uns tempos acabaram-se as analogias.
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Esplanada na praia

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(foto tirada daqui)

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Nas esplanadas repletas de gente, os pedidos constantes sobrecarregam de trabalho os empregados de mesa: águas, refrescos, gelados, marisco e cerveja correm em desfilada ininterrupta de tabuleiros equilibrados por mãos firmes.
As crianças fazem birra, porque afinal não era aquele o gelado que queriam (felizes os pais que mediante um olhar fulminante alcançam calar a criança e fazê-la comer o gelado); ou porque estão fartas de ali estar e querem ir ao banho (já os olhos dos pais chispam de impaciência se elas não se calam e que remédio têm elas senão ficarem sossegadas).
As senhoras de mais idade suspiram e abanam os leques; os homens esfregam de contentamento as barrigas bojudas; a um canto um casal namorisca, bebericando do mesmo copo; os velhos rezingões, intolerantes ao calor, entregam-se à modorra, depois de destilada a sua impaciência sobre os filhos que os convenceram a sair de casa; alguns jovens acotovelam-se e rodam os pescoços em direcção da rapariga que acaba de se sentar; os solitários inveterados demoram o olhar na linha apaziguadora do horizonte, outros retomam a leitura de um romance que há muito ansiavam ler e que invariavelmente aguardava intocado na estante por melhor ocasião. Porém, não é fácil conjugar a leitura e o denso burburinho da esplanada.
As conversas encadeiam-se na cumplicidade de sorrisos e olhares trocados fortuitamente, de risos miudinhos e por vezes altissonantes - aquele género de riso que geralmente premeia uma anedota picante e que concentra em si todas as atenções.
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