domingo, julho 23, 2006

De Fábio H. L. Martins

.
1ª Carta do Alinhavar
.
Lúcia:
fujo aos meus usuais lugares comuns, à minha familiar e inocente hipocrisia e não começo por inquirir aos céus se te lembrarás de mim. Aliás, talvez até melhor se adequasse à tua memória um início de mensagem tímido, fácil e fugidio. Não deixa, contudo, de ser risível, que tendo eu partido para esta secretária na tentativa de expurgar de mim toda a minha habitual covardia, tenha começado precisamente por utilizar um verbo que me é tão penoso e tão bem me ilustra; em primeiro lugar a meus olhos, depois, se a mais alguns (e cá estou eu a não dar por certas as mais irrefutáveis verdades), evidentemente aos teus.
Nesta altura sinto que contrariamente a toda a minha vontade te deixei bem no meio do meu turbilhão mental. Nunca foi minha capacidade tornar a minha mente inteligível e o meu pensamento fácil de acompanhar. Felizmente não sinto que essa incapacidade alguma vez tenha reflectido uma real desordem da minha consciência. O que aparento de caos, acredita, não tem correspondência na minha real essência. Terão sido talvez o medo, a fuga, a hesitação que sempre mascararam a minha imagem. E como queria que assim não fosse.. Sabes como tive uma infância feliz, sabes até como era olhado como prodígio pelas habilidades simples pelas quais me habituei a ser admirado. Não terá sido aí que alguma coisa falhou.
Não te escrevo para me redimir de nada do que sou, do que me fiz e com isso eventualmente te tenha feito. Perceberás adiante, que na verdade nem sequer te escrevo. Terei mesmo legitimidade para questionar se de facto escrevo. Não, não deliro nem tento aludir à minha longa ausência para poeticamente invocar a inexistência. O que quero dizer é que talvez não possa afirmar que TE escrevo se parcas são as possibilidades de vires a conhecer estas linhas. Sendo a motivação pela qual redijo a de delinear uma carta para ti, compreenderás agora, que ,em suma, não sinta que de facto escrevo.
Talvez seja por isso que todo o pensamento tome forma tão descuidado, tão livre. Sabe bem, conceder-me agora a liberdade de escrever o que me aprouver. Nunca, como nesta situação, o atroz egoísmo que me morde o espírito me fustigou menos.
Lembrar-te-ás de mim, por certo, como um rapaz sonhador, um jovem idealista e um projecto de homem progressivamente acanhado e escondido por trás do pressuposto social. E com propriedade o fazes. Se é certo que acredito que ninguém em sã consciência poderá livrar o peito da opressão causada pelos próprios defeitos, não menos verdade o é que, ainda assim, a maioria de nós sente capacidade suficiente para julgar os outros e desdenhar das suas imperfeições. Acho que isso se deve fundamentalmente à facilidade com que cada um de nós dá absolvição aos próprios actos. Mas dar-lhes absolvição não significa esquecê-los, talvez atenuá-los e muitas vezes nem isso. Eu vivo incomodado com os desvios que tomo em relação à minha vontade, e quando a esta cedo, algumas vezes me atormento por me achar (e me tornar, de facto) egoísta e presumido. Percebes agora se te falar em desorientação?Habituei a proteger-me sob a égide da loucura. Pensava para mim - “estou a endoidecer”-, e percebo agora como teria sido escarnecido se alguém de alguma forma me adivinhasse o pensamento.
Tenho necessidade de escrever como se fosse uma pessoa importante, o que na verdade sou... para mim mesmo. Sinto-me sempre a pessoa mais importante do Mundo, não me esquecendo, contudo, mesmo não tendo em conta a concepção do Absoluto, mas apenas do ponto de vista do senso comum, que não tenho a mínima importância. Que importaria ao Universo que eu nunca tivesse nascido? Que importa Demócrito, que importa Platão, que importa Picasso? Que importam se o Tempo não parará até parar definitivamente?
Comunico-te que decidi soltar as amarras, no sentido lato e literal.Vendi a casa que conheces, os carros, a bicicleta, as acções e a maioria dos bens que 19 anos e 11 meses de vida hospitalar me permitiram adquirir. Não foi fácil, como podes imaginar pelo conhecimento que tens do meu apego às coisas “insignificantes”.
Com parte desse dinheiro comprei um barco em vésperas de afundamento. Preferi assim, pois pude passar os últimos seis meses a ressuscitá-lo e a fortificá-lo. Além de assim me ter ficado por quase metade do preço, ainda tem a vantagem de, dentro de certos limites, estar como eu o idealizei. Chamei-lhe “Lua”, depois de várias hipóteses que me pareceram ocas. Como sabes sempre tive uma inexplicável paixão pelo mar, e apesar de pouco saber dele e menos ainda de como se pode dominá-lo (ou deverei escrever, “de como evitar que ele me engula”?) aventuro-me a dissecá-lo devagarinho. Finalmente tirarei o pó ao diploma do curso de navegação que fiz à tanto tempo. Parto sem rumo, e imagino-te a chamares-me insano ao saberes que propositadamente parto sem qualquer noção geográfica. De propósito evito quaisquer mapas e levo apenas uma bússola. Tenho todo o Tempo ao meu dispor, o combustível que me foi possível armazenar e conto com os favores do vento para quando este se acabar. Para que se torne tudo mais claro digo-te que não pretendo voltar a terra. Jamais!
Não se trata de um suicídio como a esta altura, se lesses esta carta, poderias estar a pensar.
Opto por uma outra forma de vida, com coragem, para que, quando esta me faltar, eu saiba que é porque já a tive.
Como te disse, solto as amarras que aqui já me envolviam com tanta lassidão que tudo o que faziam era quitar-me movimentos mais amplos.
Se me permites a inconsequência de te chamar amor: meu amor, parto feliz, e em mim sinto subir a adrenalina a níveis que não me lembro de ter subido antes. Do azul para dentro tudo parece poder ser meu.
Se a viagem for curta, seja pelo que for que a interrompa abruptamente, não terei sobre os meus despojos um epitáfio que assinale o que fui ou para quem fui, mas parto com a viva esperança de com o meu leme poder rasgar na água uma mensagem que só eu poderia ler se um dia trocasse o azul revolto dos mares pelo azul esbatido e tranquilo dos céus.
Se estás curiosa em relação ao que levo comigo, digo-te que além do indispensável, levo a máquina de escrever, papel, lápis e todos os rascunhos meus que tinha guardados. Não evitei seleccionar alguns livros, duas almofadas, 23 fotografias, algum tabaco, um frasco vazio de um perfume teu, o Mischa (aquele velho peluche azul), o telemóvel (?), gin, vinho do porto, água tónica e uma quantidade considerável de copos.
Questionarias porque menciono os copos, não questionarias? Porque lhes destino uma função bastante diferente daquela para a qual existem. Desde que decidi partir, percebi que me seria impossível perder todo o contacto com os que cá ficam. Como também me agrada manter a liberdade de escrever assim descuidadamente, e porque, uma vez escritas, as cartas não mais farão sentido perto de mim, decidi lançá-las às marés em copos. Compreendes assim que seja impossível que venhas a ler esta ou as próximas mensagens que te destinar. Exclui as garrafas por uma simples questão volumétrica, de economia de espaço.
Esta é pois a primeira carta que te escrevo desde há 8 anos, a última que te escrevo em terra.
Parto amanhã e ao fim da tarde lanço o meu primeiro copo!
Adeus!
Sérgio
.
Alinhavar, 12 de Setembro de 2002
.
P.S. . Mais do que a longa amizade (com as ausências intermitentes que a distância e as vicissitudes da vida por vezes criam e que de lado a lado, sem querermos, tacitamente vamos consentindo), o que sobretudo me leva a recomendar o blog deste meu amigo - The Dirty End Of Winter - são as verdadeiras pérolas que lá se podem encontrar e de que este belíssimo texto é exemplo. Respira-se lá o que de melhor a vida tem para oferecer: sentimentos verdadeiros.
.

0 Comentários:

Enviar um comentário