domingo, dezembro 31, 2006

Devaneios sobre passas (nada a ver com charros, se bem que o teor do post...)

.
.
Por falar em crenças, tradições e desejos... Se houvesse um Pai Natal para o dia do Réveillon, quem é que seria? Quem seria, quem seria? Quem receberia a nossa lista de desejos no Réveillon? (se bem que depois não se pudesse fixar uma data para a entrega e o desejo, supostamente realizado, muito menos nos seria entregue às mãos ou deposto sob a árvore de Natal... Ah pois é! Cada qual tem que ir atrás dos seus para os receber e merecer, a menos que um ou outro lhe caia dos céus...)
Resposta a medo: o Pai Natal do Réveillon é... o génio da lâmpada mágica... Bingo! acertou! Sim, de facto é mesmo ele. (Na verdade, apetece-me que seja mesmo ele). Uma vez por ano, todos os anos, por breves segundos, o génio da lâmpada mágica dá-se ares de uma dodecadeidade ubíqua. Dá-se literalmente ares: excepcionalmente, sem precisar de esfregadela, é vê-lo escapulir-se da sua lampadazinha, como Deus saindo do seu paraisozinho, ou Lúcifer saindo do seu infernozinho, para depois volatilizar-se e repartir-se por todas as doze passas desse mundo fora.
Porquê Deus? E porquê Lúcifer? Começo pelo segundo (maus da fita, primeiros) - se bem que a Lúcifer agrade o seu inferno, o mesmo não sucede no caso do génio (que consiste na triste vida de recluso que leva no interior da lâmpada), daí que não se importe nada com um passeio extravagante ao interior húmido e cavernoso de inúmeros aparelhos digestivos, a bordo de milhões de resquícios de passas trituradas e em liquefacção. Sim, o génio da lâmpada é omnipotente e resiste a tudo: à mastigação, à trituração, à deglutição, aos sucos digestivos... Quanto à referência a Deus, além da dodecadeidade ubíqua e da omnipotência de que já falei, há aqui um paralelo com a promessa de um paraíso póstumo, de um mundo de recompensas para os justos - neste caso, a promessa dos desejos por realizar, (mas não postumamente, claro). É a dilação. As coisas que venham parar às nossas mãos. Sonhar, desejar, crer... é fácil e por isso tão bom. E crentes não faltam. Creio eu...
.



12 passas, para que vos quero?...

.
A propósito de se desejarem boas entradas a torto e a direito
**, dei comigo a pensar** que entrar é fácil. É questão de um segundo** apenas, da terra não parar de girar de repente**, de não se levar com a rolha do champanhe num dos olhos** e de não nos engasgarmos com as doze passas. Mais difícil é persistir na luta para que bastantes milhares de segundos depois o novo ano continue a revelar-se bom. 12 passas, para que vos quero?... Uma por cada mês? Mas uma só dá para tanta tanta coisa...

**
preferencialmente a direito**...
** sim, de facto até eu me surpreendo por ainda conseguir pensar a estas horas...
** (versão auto-irrisória)
sim, de facto até eu me surpreendo pela raridade do fenómeno em si, independentemente das horas...
** nada de esmiuçar a questão das infinitesimais e o paradoxo de Zenão...

** que dizem os físicos sobre a probabilidade disto suceder? Acho que até eu** sei: ínfima, ínfima...
** desconfiar dos alcoolizados que teimam em querer encetar a garrafa.
** virá agora alguma voz interior dizer-me que também se escreve direito por linhas tortas? Ora ora, não me catequizes...
** eu que ainda não fiz a caderia de Física I, penso cá para mim que uma passita** até que não seria aqui mal empregue, não senhor...
** porque não uma sultana** para a força do desejo ser maior?...
** Espero não ter dado ideias àqueles originais que adoram subir a parada das coisas... Não me apetece nada ser acusado de instigador moral de casos de engasgamentos com doze passas de figo. Entopem-se as glotes e os serviços de urgência em dia supostamente festivo. Não quero isso. Se querem upgrades na tradição, fiquem-se pelas sultanas, como eu.
.


Quase 2007 e com a certeza (e a calma aceitação?) de que...




Sheri Lynn Thompson

There's not enough hours in the day
to say all that I want to say.
There's not enough days in the week
and weeks go by quicker than drunks knock back liquor.
There's not enough weeks in the month
to do all that needs to be done.
There's not enough months in the year
and years disappear like the bubbles in my beer.
(...)

The Divine Comedy, Timestretched


2006: fazer por ser um adeus colorido

..


Caro senhor 2006:

.
A poucas horas de se despedir de mim e de todos os outros habitantes deste vasto planeta, sinto-me na obrigação de lhe dizer isto: obrigado pelos seus vivos ensinamentos. Pela sua passagem - calma umas vezes, meteórica em outras. Apesar de alguns maus momentos que pautaram a nossa mútua convivência - e já diz o dito que não há males que não venham por bem -, não abuso da sinceridade ao expressar-lhe a minha enorme gratidão. Sim, devo-lhe muito. Tanto. Ajudou-me a crescer. A abrir os olhos que por longo tempo mantive fechados, como num eterno sono acordado. Ajudou-me a expandir o peito como quem deseja inspirar novo ar: ar mais puro, parte dele reciclado. Devo-lhe o grande feito de me ter aliciado a sair do meu covil, de me cativar com aventuras pelo exterior, de me ter aberto mais a este mundo. Mundo tão rico, tão pleno de possibilidades, mas que por vezes, face ao menor sinal de abertura ou de vontade de querermos desbravar por novas áreas, se mostra de uma hostilidade desanimadora. A pouco e pouco permitiu-me reconstruir e calçar os pés e fazer renascer em mim o desejo de voltar a caminhar. Como se não bastasse, prendou-me com a lembrança de bens essenciais como fé e esperança. Não me amparou em certas quedas, (nem lhe cabia fazê-lo, certo?), mas trouxe-me sempre novas manhãs, (calorosas, luminosas... algumas), nas quais pude ancorar velhas angústias e vê-las reflectidas sob diferentes raios de luz, até conseguir extrair algum sentido das coisas. Houve dias que, ao sorrirem do alto de céus límpidos, me permitiram desdobrar dores e problemas, tal qual um prisma pluri-facetado desdobra a luz. Cada uma das cores à saída foi mote para as perseguir em abstracto e em sonhos, e ganhar a percepção de que elas se podem materializar no aqui e agora. Um dos passos para o conseguir, julgo passar por não limitar no dia-a-dia a nossa palette de cores. Aos cinzas já todos estamos habituados, mais que enjoados.
Há que acreditar na força e na verdade das cores quentes e primaveris. São mais raras, obtêm-se a custo, por correcta mistura de pigmentos, mas valem o esforço e a espera. Um dia chegarão, mais do que às prestações...
Caro sr. 2006, agradeço-lhe ainda por me ter proporcionado aquilo com que de mais rico se pode preencher uma existência: o reatar de algumas amizades, o aprofundamento de outras, a doce descoberta de novas, encontros e reencontros, confidências e abraços, lágrimas e suspiros, olhares e bem-quereres, sabores e perfumes. Por tudo isto, que é tanto: um grande grande adeus! Parta com a certeza de que tão cedo não será esquecido.
.


segunda-feira, dezembro 25, 2006

Em dia de pouco sol...

.
.
Wanda Wulz, Moi + Chat (1932)
.
O meu gatinho, esticado sobre o muro, não se quis pronunciar sobre a questão do filtro verde. Cerrou as pálpebras e soltou apenas um miado roufenho (tem andado constipadito), como quem quer uma festinha e poucas conversas.
.


domingo, dezembro 24, 2006

Feliz Natal a todos!

.
.
(da autoria de Rosa Pomar)
.


sábado, dezembro 23, 2006

"Scrap note" antes de me ir deitar:

.
O tal osso pertencia a este senhor, de seu nome Scraps: companheiro fiel no aqui e no além-mundo.
.
.


Some other night... because... il fait "freud" (froid)*

.


.
It's cold outside
it gets so warm in here...
.
.
Pequena variação minha do tema "11 O'Clock Tick Tock" dos U2. Porque transcrever o "hot" do original, seria não só puxar demais pelo bas-fond de l' esprit (neste momento não podia estar mais nos antípodas), como também por Freud, esse velho perseguidor de almas. O "warm" não é uma gradação menor do que acabei de dizer, dado que é externo a mim e resulta do privilégio de estar no conforto de um quarto com aquecimento. O que a bem dizer já é muito e ao qual, apesar de tudo, dou graças.
.
* . Eu e os trocadilhos... Ainda venho a ser banido por utilização abusiva das palavras, numa acção* movida por quem defende que elas merecem melhor tratamento. E de facto merecem.
.
*
. Mas que ego é este, inflado assim tão de repente? Onde é que já se viu um anónimo ser alvo de uma acção?
.



Some other night...

.


.
Vontade de ir a correr lá para fora e encher as meias de preganas, apesar de não estar na estação mais indicada para isso. E voltar a casa a resfolegar.
.


Cereja afunilando, cedendo à embriaguez.

.


.
A good pool to swim? Not just now... Por enquanto contento-me com o Swimming dos Babby Mammoth.
.

.


Or show me show me show me how to do that trick...

.
.
show me
show me
show me
how you do that trick
the one that makes me scream
she said
the one that makes me laugh
she said
and threw her arms around my neck

show me how you do it
and i promise you
i promise that i'll run away with you
i'll run away with you.
(...)
.
The Cure,
Just Like Heaven

.


Alice in Chains - Them Bones

.

.


Show them bones

.

.
Os esqueletos no armário eram tantos, que aquela vida parecia ter-se dedicado a coleccionar os bonecos articuláveis do Corpse Bride.
.


L***

..
Not Nest-Ecessarily Love
.
Not just what I want? Inominável, questionável, de se temer... quando as endorfinas começam a mostrar as suas garras?

.


The Bravery - Unconditional

.
.
I've spent my whole life surrounded
and I've spent my whole life alone.
I wonder why I never wonder why
the easiest things are so hard.
I just want, I just want l***
(...)
.


"Improvisos"

.

Chardin, Attributes of Music

.
Improviso-me com todos os instrumentos que me chegam às mãos. Mas por muito que improvise e busque fórmulas novas, a música que toco nunca a consigo tornar do meu agrado. A exigência pode ser castradora se em excesso. Este, desde há muito, que é um movimento de arco interior, sem que no entanto me tenha alguma vez sentido dirigido por batutas. Talvez haja quem ache que façam falta. A esses contraponho: liberdade e independência acima de tudo. Mesmo nos erros e nas más escolhas. Do tema da batuta, pelo que tem de implícito em termos de imposição, sou levado a reflectir no exterior que me rodeia. O que me impressiona logo à partida é o peso do silêncio e da solidão. Ambos tornam-se em hábitos que assentam que nem uma luva a certos egos que perdem horas e horas a imaginar o que se passa lá fora, a esmiuçar cada acção do dia, cada gesto, cada palavra que proferiram ou que lhes foram dirigidos. Em suma: a remoer.
Somos um entre muitos músicos a dar o nosso pequeno contributo na elevação de uma massa sinfónica com peso e meios de locomoção? Se desse um concerto faria por evitar a tomada de consciência de que o provável seria não estarmos sós. Audiências? Responsabilidades a mais? Mas antes disso, as audições... que, ou nunca existiram, ou, naquelas a que ficciono ter ido, os poucos que aí se demoraram, na plateia ou noutro sítio qualquer, julgo que não o fizeram por consideração a mim: limitaram-se a passar o tempo à conversa, no conforto que o anonimato das brumas confere. De vez em quando uma ou outra mirada em direcção ao palco, onde para eles - eu que me dava conta de que actuava a solo sob potentes focos de luz - pura e simplesmente não existia. Seremos todos solistas sob um foco de luz que nos parece a nós que nos escrutina cada gesto? Não será pura ilusão crer na separação artificialmente definida nos termos "palco" e "plateia"? A solidão talvez forneça uma resposta possível: o foco de luz reside apenas na nossa mente. Tornamo-nos demasiadamente introspectivos e sendo assim amplificamos demasiadamente as luzes. Parece-me cada vez mais que mesmo para os que nos dizem gostar de nós, mesmo para esses, acabamos remetidos às brumas.
Pior do que a surdez em redor, a música que produzo é que é indubitavelmente destituída de volume. Não lhe consigo doar a amplitude, nem, especialmente, o timbre que de facto mereceria à nascença, quando das batidas internas, do calor dos órgãos, se reúne em tons e decibéis desejosos de partilha. Pior que a pior das recepções, é a consciência do falhanço, do ficar aquém do que se sonhou para uma determinada composição. Isso sim parece um balde de água fria despejado de uma só vez. Os tremores do corpo encharcado percutem-se a todas as células, passando a ser esse o compasso musical regente. A verdadeira música abafa-se à nascença por não haver como dar-lhe a forma devida.
.
«There's not enough lines on the stave / to capture the music I crave / There's not enough to my bow / and even the barmen know / extracts from Carmen. / There's not enough notes in the scale / it feels like I'm chasing my tail. / There's not enough beats in the bar, / and bars get too busy with folks asking "Is he?"»
The Divine Comedy, Timestretched
.


Silence is not sexy at all

.
.
Darryl Van Citters and Hector Martinez, Speechless
.
Afinam-se os rostos pelo lamiré do silêncio.
As notas apagam-se ao menor esforço
de lhes dedilharmos os corpos.
Uma palavra de incitamento que sirva de batuta
arrisca-se a vibrar no ar sem o seguimento
de um fraseado melódico...
.


sexta-feira, dezembro 22, 2006

An empty nothing

.
Se num bloco-notas anotasse os pequenos vestígios do dia e mais tarde os procurasse reconstituir, hoje não obteria mais do que uma página em branco.
.


quinta-feira, dezembro 21, 2006

Se Narciso fosse bicéfalo teria sido mais feliz?

.
Mordillo
.
Poderia já não se enamorar do seu reflexo na fonte e deixar-se morrer em demorada contemplação, mas nada garante que não se iria enovelar em si mesmo até à asfixia...
.


Buscar um impossível reflexo implica definhar?

.
Waterhouse, Echo and Narcissus (1903)

.
"Pausânias refere que Narciso tinha uma irmã gémea, com quem era imensamente parecido. Os dois jovens eram muito belos. A rapariga morreu; Narciso, que a amava muito, sentiu uma dor enorme e, num dia em que se viu numa fonte, julgou a princípio ver a irmã, e isso consolou-o do seu desgosto. Embora soubesse perfeitamente que não era a irmã quem via, ganhou o hábito de se olhar nas fontes, para se consolar da sua perda. Segundo Pausânias, teria sido essa a origem da lenda tal como era originalmente contada."
Pierre Grimal - Dicionário da Mitologia.
.


Play, Lázaro!

.
.
Booka Shade, Movements (2006)
.
Viva! O meu leitor de cd's ressuscitou dos mortos! Bastaram-lhe uma insistente reanimação cardíaca (sei lá quantas vezes a carregar no play), uma pancada final para rematar a coisa (estão a visualizar a descarga eléctrica que desce por uns fios até ao crânio do Frankenstein? pois bem, a intensidade da pancada não se ficou atrás...) e os movimentos (abracadabra) dos Booka Shade para que se re-insuflasse de vida. A partir de agora, se ele voltar a embirrar comigo, passará a haver uma relação mais física entre nós... Ele está avisado.
.


quarta-feira, dezembro 20, 2006

S.O.S. (em bits e em hertz)

.

.
Agora que estou em Coimbra, longe de todos os confortos da casinha (o que inclui música vibrante por quase todas as divisões), o leitor de cd's resolveu dar o berro. O último suspiro deu-o ao som dos Kraftwerk, que até estão entre os pioneiros no uso de sintetizadores e, portanto, amigos insuspeitos das tecnologias. Não fosse isso e estaria tentado a deitar as culpas da maldita avaria ao "Radio-Activity" (álbum excelente, aliás). Resumo da situação: trata-se quase do fim do mundo para mim... E agora? Como estudar sem música? Reformulo: como sobreviver sem música os três dias que me restam para voltar para casa? Ai! Acudam-me! Mandem-me sons! Please!
.


terça-feira, dezembro 19, 2006

Anti-cartesiana no mau sentido

.
A aprendizagem na universidade cada vez mais me parece (ou sempre me pareceu?) ser um processo de gradual abdicação do espírito livre.
.


As três primeiras regras para a direcção do espírito

.
Regra I

A finalidade dos estudos deve ser a orientação do espírito para emitir juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo o que se lhe depara.
.
Regra II

Importa lidar unicamente com aqueles objectos para cujo conhecimento certo e indubitável os nossos espíritos parecem ser suficientes.
.
Regra III

No que diz respeito aos objectos considerados, há que procurar não o que os outros pensaram ou o que nós próprios suspeitamos, mas aquilo de que podemos ter uma intuição clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza; de nenhum outro modo se adquire a ciência.

.

René Descartes


Little warriors

.

Alvin Booth

.
As pequenas feridas saram ao toque das mãos certas... Primeiro, com as nossas... porque se não formos capazes de nos ajudar a nós próprios, também não conseguiremos ajudar mais ninguém.
.


sexta-feira, dezembro 15, 2006

"Monsters exist", said the box...

.

Orbital, The Box.
.
And I don't need to roam. I know exactly where I can find them...
.


quinta-feira, dezembro 14, 2006

Happy tree friends... (my amusing study break)

.


.
eye-fall... de tanto estudar? nah...

.
.
mas adivinham-se insónia e pesadelos pré-exame...
.

.
ainda hoje ando às voltas com os ensaios de controlo sobre o cat-gut (um fio de sutura obtido a partir da sub-mucosa do intestino delgado do carneiro)...
.
.
ao que estou sujeito se continuar a perder tempo com intervalos assim?...
.


Filtro verde

.
.
Ainda estou para perceber porque é que quando abrimos os olhos, depois de longo tempo com eles fechados e voltados para o sol, vemos tudo à nossa volta numa tonalidade verde. Será o filtro da esperança? Colocado à nossa frente, depois de termos por instantes carregado baterias? Haverá por aí algum(a) lagarto ou gato(a) - animais que adoram espojar-se ao sol - capaz de me esclarecer?
.


Pois...

.
Estudar devia ser sempre um fidelity affair...
.


Sons nórdicos


.
.
The Contemporary Fix (faixa 11).

Hans-Peter Lindstrøm "It's a feedelity affair"(2006) (resenha crítica na Pitchfork)
.
.


Fim de dia

.

.

Há esgrimas nos olhares dos cruzados
que regressam da terra santa dos ofícios;

sabres nas mãos dos que seguram sacos
brandidos a expedientes a meia altura
de outros corcéis;

farrapos na botoeira dos fatos;
sevícias que o andar desperta,
de presa a enfiar-se no carro.

O forro de um sorriso,
engomado só para o efeito,
descose-se mal se olha para o lado,
em acusações sem remetente em particular.

Fita-se a vidraça como ao quadro mais belo,
que vale bem o silêncio ao fim dum duelo.
23-1-2006
.


segunda-feira, dezembro 11, 2006

And up again...

..
Inconstante? Eu?
.


domingo, dezembro 10, 2006

O sonho desmesurado?

.
Ícaro

.

Lúcifer deu o exemplo: somos todos anjos caídos. Mas não é dessas quedas a que agora pretendo aludir. Nem disso trata a imagem. Sonhos desmesurados implicam quedas proporcionais, para as quais parece não haver amparo possível...
.


Desmesura

.

.
Ave agoirenta sem asas para voar.
Tal como Ícaro, enxertaste umas de cera
que logo amoleceram por tua desmesura.
Tu que desaprendeste o canto
e o simples prazer de te fixares
num galho de árvore, junto dos outros,
igual aos outros, ora quedo ora a trinar,
dando voz à harmonia sã das auroras,
tens planado no poente, sem nunca pousar,
sobrevoado o fosso das noites, ansioso
por outras manhãs.
Manhãs que dispõem para ti
o trampolim
para um voo mais alto,
de desafio à tangente
do arco solar.
E o risco da queda
que inebria como morfina?...

.
30/8/2005


Tempo em que se morre *

.
.
(...)

Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.
E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.
.

* de Eugénio de Andrade.

.


sexta-feira, dezembro 08, 2006

Limbo

.


.
O limbo do despertar sempre foi fino, como vidro, através do qual um raio de luz se refracta. À semelhança deste, atravessamos um meio para outro - e há perdas na passagem. De intensidade. O ângulo de incidência assim o determina.
.


Playground

.





Transpôr a cerca do dia,
pois o parque é tão mais livre à noite.

Vai uma fugida até lá fora?
Uma pegada na quase respiração da relva,
quando ela adormece de cansaço?
.



Where's your playground?

.


Honor Appleton (1879-1951)


.



Palavras que um dia gostaria de dizer nos olhos de alguém (2)



Nicholas M. Raynolds, Interior with Frames (2005)

Quero pintar a minha casa, a nossa casa. Enchê-la de memórias minhas e tuas. A nossa casa dirá de nós quem somos, o que amamos e com que intensidade nos entregamos à vida e às pessoas. Às coisas nem tanto. Na nossa casa não entrarão bibelôs, certo? Minimalistas nas coisas, para nos maximizarmos em relação a tudo o resto. Ao que verdadeiramente interessa...


domingo, dezembro 03, 2006

Prazeres vedados a noctívagos...

.


Melissa Selby Brown, Egg I


.
Tenho mesmo que pensar em mudar de hábitos. Acordar cedo e cedo erguer... tró-la-ri tró-la-rá. Mas lá que é verdade é. Ou parece que é. As olheiras matinais, algum desnorte, algum cansaço, atestam-no? Há séculos que não como um ovo pela manhã. Anos, mesmo. E não é por ter andado com pena do sr. Humpty Dumpty. Que saudades do estalido da casca imprimido pela colher; saudades das ondas de vapor que se libertam do interior como da cratera de um pequeno vulcão; do pão mergulhado em gema e levado à boca com uma mão por baixo para amparar eventuais pingos - e que me lembre não há durante o dia altura melhor para experimentar essas sensações. Tem de ser ao pequeno-almoço. Pensar nisso faz-me recuar aos tempos da escola, em que ainda era a minha mãe que me acordava e me preparava tudo e mais alguma coisa. Por vezes basta tropeçar numa imagem, como foi agora o caso, e acende-se qualquer coisa cá dentro. As imagens são catalizadores poderosos... de memórias e não só.
.


Preparativos e leituras

.


Edward Minoff, Reading and Red (2006)
.


Antes da leitura
a regulação do ponto focal
aos três palmos de que disto da folha
calibração com vista a minimizar
o tremor incipiente das mãos.

Em massagem leve
às zonas sensíveis do texto,
as pontas dos dedos
tintadas com palavras frescas
coçam um cenho decifrador
deixando a marca de um enigma.

Apetece-me um tinto a cada parágrafo,
a cada folha corrida pela língua
- seca de tanto ler para dentro.

E fiel à leitura
sei que traí
o desejo de beber a cada linha.
E sinto prazer em trair-me assim.

Um gole e uma frase seria embriaguez e não prazer.
A imersão quer-se consciente.
Tudo sob uma luz amena.

Os taninos distingo-os melhor em certas passagens,
e são sempre tantas as rugosidades que encontro...
Mas o culpado sou eu e não os autores que escolho.
Antes nada ler do que passar sem eles.

Um tipo de culpa que não pesa, que nem é culpa, mas partilha.
Segredos, alguns terríveis, desfilam à minha frente,
mas sem que me exigam piedade ou catarse.
Os aromas não se devem anular de modo a escamotear as zonas agrestes;
daí que eu até prefira ler quem do feio consegue extrair o belo.

.



Os Neubauten sabem-na toda...

.

.


Silence is sexy?

.


.
Temer o silêncio pode aos poucos contribuir para o afastamento entre duas pessoas. O silêncio, apesar de inevitável (sim, mais cedo ou mais tarde acaba por se fazer sentir), não é nenhum drama. É preciso respeitá-lo a seu devido tempo, sem obviamente o querer antecipar ou afastar de forma brusca. O silêncio tanto pode unir como desunir. Não se deve cair no erro de lhe atribuir uma carga pesada nos momentos em que se insinua, é preciso saber gozá-lo. Gozá-lo é desfrutar da companhia do outro sem necessidade de fogos-fátuos, de palavras fúteis ou desnecessárias. Por si só, o silêncio nem é um bem, nem é um mal e nisso reveste-se de neutralidade. Por outro lado, consoante a nossa atitude, pode-se tornar frutuoso ou, pelo contrário, pesado, angustiante. Portanto, é na forma como é usufruído por ambos que ele deixa de ser neutro. Cabe, pois, a uma relação ajustar-se quanto à validade dos seus timings, se ele é ou não oportuno... Silence can be extremely sexy, I guess...
.


sábado, dezembro 02, 2006

Ficção e realidade

.


Carl Dobsky, Interior (2005)
.
"Aquilo que é verdade e o modo como a vida na realidade se dispõe e organiza é algo que cada um de nós tem de descobrir por si e não pode apreender seja em que livro for"
.
in "Knulp" de Hermann Hesse.
.


Self-destructive post

.
Se nem o título se tivesse salvo, ninguém saberia da sua existência...
.


Despertamos juntos



Charles Blackman, The Kiss


Despertamos juntos. Os corpos em posição fetal, colados um ao outro. Beijo-te a nuca com suavidade, como suave é este amanhecer. Viras-te para mim e contemplamo-nos longamente. O teu rosto recebe a luz com um sorriso. Os beijos sucedem-se após uma das muitas deflagrações imperceptíveis do desejo, refreado até então no limbo do olhar.
(O Rumo Que Dou A Certas Ficções)



sexta-feira, dezembro 01, 2006

Mortalidade

.

.
Recordo-me de há muitos anos atrás, em certa noite chuvosa, em plena época natalícia, estar na sala, imóvel, junto à janela, a observar fixamente o boneco-de-neve que dias antes, eu, o meu pai e os meus irmãos, em trabalho de equipa, haviamos triunfalmente erguido no pátio murado da nossa casa, e que agora, nesse momento que recordo, tristemente derretia. A luz da sala, que se escapava para o exterior, iluminava-o e era desolador vê-lo decompôr-se na mais extrema solidão: também por impossilidade minha de ir em seu socorro, dado que chovia a potes. De mãos atadas, sem nada poder fazer, enrolei-me nas cortinas buscando consolo. A natureza desta visão e a antecipação do fim que lhe estaria reservado, ao pobre boneco, despoletou em mim um dos primeiros embates, que me lembro, com noções (tanto mais violentas para uma criança) tais como mortalidade, precariedade e fragilidade da vida... Foi então que me bateu forte o medo terrível de perder os meus pais - as pessoas que mais amava à face da terra e das quais dependia inteiramente, tal qual uma cria sem asas e sem forças para por si só se aventurar fora do ninho. Foi-me impossível conter as lágrimas. Embrulhei-me tanto quanto me foi possível nos tecidos em que já me havia enredado. A minha mãe, que dispunha os talheres sobre a mesa, prevendo os estragos iminentes nas frágeis cortinas, admoestou-me com alguma rispidez. Apercebendo-se depois do meu choro miudinho, chegou-se a mim e num tom brando perguntou-me o que se passava comigo. Neguei-me a responder. Tinha receio de revelar o teor das minhas preocupações, de ao proferir aquelas palavras, terríveis pelo alcance do que significavam - o meu cérebro começava agora a concebê-lo - pudesse com isso atrair algum tipo de azar. Entretanto o meu pai também se aproximara. Os dois, conversando calmamente comigo, foram-me pouco a pouco incutindo confiança, assegurando-me que, o quer que fosse que eu calava, não havia motivos para ter medo. Foi então que, com voz trémula e hesitante, lhes perguntei: "Papá, mamã... vocês não vão morrer, pois não?" Entreolharam-se surpresos. Estariam provavelmente à espera que confessasse alguma traquinice das feias. "Não querido... fica descansado... Onde é que foste buscar essa ideia?" Mantive-me em silêncio. Demoraram o olhar em mim e abraçaram-me.
.


Volúpia






De gatas:
assim chega a noite,
assim se oferece
nesse silêncio tão caro
ao gemido.

Prostíbulo escuro que flameja no peito,
alimento da carne e de todo o ser.

Ela espera. A voragem espera.
E não vê a hora de se libertar.

Desfaz-se a cama para a noite vir bater à porta;
e o dia?...
que espeque lá fora
até que juntos digamos sim.

Gota-a-gota, o suor
torna lascivos os lençóis
escorregadias as pulsões.

E os abat-jours
já enfeitam de luz a fricção da pele,
sob o lento deslizar de lábios.

Leito aberto como frasco de perfume
aspergindo o quarto
de violentas ondas de espasmo.


28/11/2006

.