Mortalidade
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.Recordo-me de há muitos anos atrás, em certa noite chuvosa, em plena época natalícia, estar na sala, imóvel, junto à janela, a observar fixamente o boneco-de-neve que dias antes, eu, o meu pai e os meus irmãos, em trabalho de equipa, haviamos triunfalmente erguido no pátio murado da nossa casa, e que agora, nesse momento que recordo, tristemente derretia. A luz da sala, que se escapava para o exterior, iluminava-o e era desolador vê-lo decompôr-se na mais extrema solidão: também por impossilidade minha de ir em seu socorro, dado que chovia a potes. De mãos atadas, sem nada poder fazer, enrolei-me nas cortinas buscando consolo. A natureza desta visão e a antecipação do fim que lhe estaria reservado, ao pobre boneco, despoletou em mim um dos primeiros embates, que me lembro, com noções (tanto mais violentas para uma criança) tais como mortalidade, precariedade e fragilidade da vida... Foi então que me bateu forte o medo terrível de perder os meus pais - as pessoas que mais amava à face da terra e das quais dependia inteiramente, tal qual uma cria sem asas e sem forças para por si só se aventurar fora do ninho. Foi-me impossível conter as lágrimas. Embrulhei-me tanto quanto me foi possível nos tecidos em que já me havia enredado. A minha mãe, que dispunha os talheres sobre a mesa, prevendo os estragos iminentes nas frágeis cortinas, admoestou-me com alguma rispidez. Apercebendo-se depois do meu choro miudinho, chegou-se a mim e num tom brando perguntou-me o que se passava comigo. Neguei-me a responder. Tinha receio de revelar o teor das minhas preocupações, de ao proferir aquelas palavras, terríveis pelo alcance do que significavam - o meu cérebro começava agora a concebê-lo - pudesse com isso atrair algum tipo de azar. Entretanto o meu pai também se aproximara. Os dois, conversando calmamente comigo, foram-me pouco a pouco incutindo confiança, assegurando-me que, o quer que fosse que eu calava, não havia motivos para ter medo. Foi então que, com voz trémula e hesitante, lhes perguntei: "Papá, mamã... vocês não vão morrer, pois não?" Entreolharam-se surpresos. Estariam provavelmente à espera que confessasse alguma traquinice das feias. "Não querido... fica descansado... Onde é que foste buscar essa ideia?" Mantive-me em silêncio. Demoraram o olhar em mim e abraçaram-me..
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