sábado, setembro 30, 2006

Trentemoller

.

....e umas quantas descargas cerebrais ao alcance de todos...
.


sexta-feira, setembro 29, 2006

Monólogos interiores

.
.

.

Fotograma do filme A Clockwork Orange de Stanley Kubrick (1971). Na parede um poster do grande Ludvig Van, de que Alex (o protagonista do filme) era acérrimo fã.
.

♪♪ Beethoven - Sonata for Piano No. 26 'Les Adieux' in E flat, Op. 81a

.

- Desde já lhe digo que discordo da ideia de refrear os sentimentos...
- O que quer que lhe diga?!... Meu caro, nesta vida tudo se domestica...
- Ora... como pode dizer tamanho disparate?
- Vai-se vivendo com isso e com disparates de outro quilate até, se for preciso... Tente dar-lhe rédea justa e verá...
- Mas e a sensação da cavalgada livre? Para mim, algo de inestimável...
- Ficam as saudades e a espera por melhores dias. Sabe, se for em proveito de um bem maior, aguenta-se o trote lento...
- E não se estará a anular no seu direito de sentir?
- De forma alguma. Sinto para mim.
- Mas deixa de o poder expressar livremente... Vai portanto regressar à sua vidinha introspectiva?...
- Expresso-me como o tenho feito até então: por palavras. O que lhe pretendo dizer é que não se pode sobrepôr os nossos desejos aos efeitos negativos que daí advirão para os outros.
- Deixe-se disso... Não creio em sacrifícios abnegados... Não nos tempos que correm.
- Não se trata de carregar uma cruz. Nada disso. Se se pusesse no meu lugar, compreenderia...
- De modo algum me poria no seu lugar. Olho para si e enoja-me o seu ar de animal domesticado...
- É como lhe digo... Soubesse o senhor o que sinto e compreenderia as minhas razões. Provavelmente agiria do mesmo modo...
- Não tenho feitio para Prima Dona...
- Nem eu, meu caro. Nem para carpideira. Se persiste na confusão de termos...
- Fosse eu e mergulharia de cabeça...
- Como se ilude! Há alturas em que se tem de parar para pensar, dar tempo ao tempo. Querer o bem de todos, mesmo que isso implique um período de latência.
- O senhor fala como quem já viveu tudo o que tinha para viver. Mas pelo que sei de si, falta-lhe experienciar tudo. Se não aproveita agora, quando o fará?
- Não há nada a aproveitar. Não gosto da palavra. Não faz sentido falar em proveitos. O senhor não me entende, ou faz que não entende. Se alguma vez tivesse amado, e alguém lhe dissesse o que me acaba de dizer... achá-lo-ia desprezível. Além disso não tenho pressas...
- Eu referia-me a aproveitar a vida... É que você para mim é uma página em branco. Completamente em branco. Onde tudo permanece ainda por escrever... e o tempo urge sempre, meu caro.
- Vivi pouco, confesso. Mas querer precipitar as coisas, seria enviesar a página logo de início com linhas tortas...
- Sem o querer melindrar mais do que o que tenho feito até aqui, acho-o no mínimo um caso risível... querer ostentar uma maturidade, sem base real onde se possa sustentar...
- Essa “base real” de que fala, pode-se ir buscá-la não só às vivências, como também às nossas reflexões...
- Sem estarem fundeadas na experiência real, as suas reflexões de pouco valem...
- Subestima portanto o alcance do pensamento? Longe de mim querer equiparar-me: mas que dirá então dos mundos sem “base real” entrevistos pelos grandes pensadores?...
- Pois, já que me fala de ficções...
- A seu ver, ficciono, portanto...
- Ficciona a sua vida e tem-no feito desde que o conheço...
- Tudo isto é muito real, meu caro...
- A forma de lidar com ela é que não me parece... toda essa calma, confrange-me... Tenho-o observado, sabe. Por fora: um animal domesticado; por dentro: uma fera em gritos lancinantes... Estarei errado?
- Estou a lidar bem. A fera já se convenceu de que deu os gritos que tinha a dar... Tudo se aprende, é como lhe digo... até a calma e uma nova forma de estar.
- Desculpe que lhe diga, mas você não me parece ter estofo para tanto...
- A força do que sinto e a minha motivação conferem-me a argamassa de que necessito...
- Ora, ninguém é de betão... Tudo o que se domestica acaba por esmorecer... Repare só como o olhar de um felino se modifica ao longo do seu encarceramento...
- O felino tem desejos volúveis. Eu tenho certezas. Poucas, uma ou duas, mas suficientes. Sei que a minha alma tem um encontro marcado, mas só o futuro me dirá quando.
- Lérias... Não me faça rir.
- Ria o que quiser, mas não muito alto... que eu agora quero dormir...
- Então vou-me. Durma bem e veja lá se a sua saga não o leva também a domesticar os sonhos... Adieux, mon cher!
- Não se preocupe com os meus sonhos, saberei cuidar deles... Não lhe retribuo o adeus, porque é uma palavra demasiado categórica, soa a definitivo... Digo-lhe antes até já, porque no fundo (caso não o tenha percebido) é disso que se trata...

.


quinta-feira, setembro 28, 2006

Miles Davis "Mystery"



Os labirintos de Tlön e os "daqui"

.
Tlön* seria um labirinto num planeta imaginário, mas um labirinto urdido por homens e destinado a ser decifrado por homens. Vida será sem dúvida um labirinto, no qual nos embrenhamos apaixonadamente e onde o nosso imaginário não é menos rico. As paixões toldam-nos a razão, mas nem por isso diminuem as possibilidades de encontrar a saída - a nossa, quer individual, quer colectiva. Dizem que foi urdido por Deus, destinado a ser decifrado por uns quantos eleitos. Dizem que o livro dos livros se encontra pejado de sinais e que as respostas, a revelação aguardam em nós. Creio no entanto, que se esse labirinto for passível de ser decifrado sê-lo-á por outras outras divindades que não o homem. Ou melhor, é assunto que nos está vedado, a real mystery. A haver resposta, julgo que ela passa pela fruição*.
.
* refiro-me ao conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" de Jorge Luís Borges.
* E porque não começar já de imediato pela fruição do tema "Mystery" (álbum Doo-Bop) do eternamente grande Miles Davis?
.


quarta-feira, setembro 27, 2006

Lar

.

.
I
Cada passo é inscrito no cartão de visitas do alpendre.
Os cansaços trilhados, retidos no preâmbulo do tapete.
O roçar das cerdas que à entrada evoca as andanças de mais um dia,
levanta a última poalha antes que ele assente e o demos por findo.
Transpor o umbral é tão seguro como aninhar-se numa dimensão aveludada,
para rezar no templo climatizado que em família se erigiu para si.
O ócio é o ritual eleito, a receita prescrita e cumprida a rigor
pelo sacerdote, pelo médico - de que todos julgamos ter um pouco.
Por vezes, no ninho que julgávamos tão acolhedor
esconde-se em deleite a ave de rapina a trinchar
a casca ovóide dos preciosos totens do lar.
2/9/2005
.
II

Aranha que abandona a laboriosa teia
que desliza pelos trilhos de seda que improvisa
aspirando a um lugar farto e seguro
longe dos pauzinhos que espiolham o seu lar.
4/10/2005


Home

.




Here is a song from the wrong side of town
Where I'm bound to the ground by the loneliest sound
And it pounds from within and is pinning me down

Here is a page from the emptiest stage
A cage or the heaviest cross ever made
A gauge of the deadliest trap ever laid

And I thank you for bringing me here
For showing me home
For singing these tears
Finally I've found that I belong here

The heat and the sickliest sweet smelling sheets
That cling to the backs of my knees and my feet
Well I'm drowning in time to a desperate beat

And I thank you for bringing me here
For showing me home
For singing these tears
Finally I've found that I belong

Feels like home
I should have known
From my first breath

God send the only true friend I call mine
Pretend that I'll make amends the next time
Befriend the glorious end of the line

And I thank you for bringing me here
For showing me home
For singing these tears
Finally I've found that I belong here
.
Depeche Mode




Imaturidade?

.


Lucien Freud, Reflection (self portrait), 1985


Ao longo de todos este anos não me parece que tenha compreendido porque se aprende tão pouco ao longo dos anos.


terça-feira, setembro 26, 2006

Fugas

.

Edward Hopper, Morning Sun (1952)


.
I


Desde que me ameaçam com prisões
os dias parecem-me mais belos
quando pousam nos albergues
que constam da rota das minhas fugas.



II

Consumo os dias em fuga
de um reflexo de noite,
de horas em que indaguei
quem fui e quando houve
a separação primordial de mim.
.


29/12 & 28/5/2005


O aperto do nó


Como desapertar um nó que nos aperta a garganta, se tudo e todos em nosso redor se põem aos gritos mal reparem que dissimuladamente o tentamos desfazer?



Ronronar

.
O som do secador lembra-me o ronronar de um gato. Apazigua-me. Desde que me lembro, sempre foi assim. Deve tratar-se de uma daquelas memórias embrionárias, associadas ao mais cálido bem-estar - eu na barriga da minha mãe, enquanto ela secava o cabelo.
.


A ponte feita de espera (por melhores dias)




Alexander Lowry, No Diving From Bridge


"Eu estava rígido e frio, era uma ponte, lançada sobre um abismo. Deste lado estavam enterradas as pontas dos pés, do outro as mãos, e eu mordia o barro a esboroar-se. As abas do meu casaco esvoaçavam-me de ambos os lados. Lá em baixo marulhava, gelado, o ribeiro cheio de trutas. Nenhum turista se perdia por estas alturas inóspitas, a ponte ainda não vinha assinalada nos mapas. - Não podia fazer mais do que ficar ali e esperar; tinha de esperar. Sem ruir, nenhuma ponte uma vez construída pode deixar de ser ponte. (...)"


"A Ponte" in Parábolas e Fragmentos de Franz Kafka.



No meu quarto


Michael Weber, A New Handle on Things



A felicidade espreita-me da fechadura da porta. Sabe que não a posso abrir e escarnece de mim. Observa o meu vaivém de parede a parede, como quem vai preso a uma mola interna que se estica e se comprime. A angústia tem-na esticado particularmente bem ao longo dos dias.



The Knife - "Marble House"







I cut your nails and comb your hair
I carry you down the stairs
I wanted to see right through from the other side
I wanted to walk a trail with no end in sight

The moment we believe that we have never met
Another kind of love it's easy to forget
When we are all alone then we do both agree
We have a thing in common this was meant to be

You close my eyes and soothe my ears
You heal my wounds and dry my tears
On the inside of this marble house I grow
And the seeds I sow will grow up prisoners too

The moment we believe that we have never met
Another kind of love it's easy to forget
When we are all alone then we do both agree
We have a thing in common this was meant to be

Now where's your shoulder
What is it's name
What's your scent
Say it again
If it goes faster can you still follow me
It must be safe when it's on TV

I raise my hands to heaven of curiosity
I don't know what to ask for
What has it got for me?
The others say we're hiding
It's as forward as can be
Some things I do for money
Some things I do for free




segunda-feira, setembro 25, 2006

"Pão e Túlipas" (mas onde é que eu já ouvi isto?)

.
Mãe e filho no supermercado.


Rosalba - Mas o que é que tu queres fazer?

Nico - Sei lá...

Rosalba - Como sei lá? Deve haver alguma coisa que te agrade.

Nico - Mas quem é que consegue fazer o que verdadeiramente lhe agrada?
.


"Pão e Túlipas" (pétalas caídas)

.




.
Sentado à mesa, rosto abatido, quem sabe se a congeminar algo... Sobre a mesa, um vaso com as túlipas* que Rosalba lhe deixara com uma nota de despedida. Uma única pétala presa por um fio. As restantes caíram e amontoaram-se numa cristaleira, onde se fixa o olhar de Fernando. Por fim, também a última pétala se desprende. Como se fosse esse o sinal pelo qual aguardava, Fernando levanta-se, pega na mala do acordeão e põe-se em marcha, decidido a reencontrar Rosalba e a declarar-lhe o seu amor.
*
Se Fernando lhe oferecia pãezinhos (calor que aconhega) ao pequeno-almoço, Rosalba ofereceu-lhe túlipas
à despedida (contemplação, embrenhamento no amor não declarado e progressivo esmorecimento) - daí o título, suponho eu.
.


"Pão e Túlipas" (o preço da inacção)

.





.
E - Avô, o que tens?
F - Nada Elíseo, nada.

E - «Sei que as tuas palavras parecerão confusas, mas um dia compreenderás.» É o que me dizes sempre.
F - O que me consome é a minha insensatez. Mais uma vez a felicidade em vão bateu à minha porta.
E - E tu abriste?
Fernando Girasole inclina-se e fita o neto nos olhos:
F - Estava surdo. E agora esmoreço. - e encosta a testa à do neto.
.
* diálogo no filme Pane e Tulipani (Pão e Túlipas) de Silvio Soldini - 2000.
.


"Pão e Túlipas" (o convite)

.



.
Gostei da forma como Fernando,
à saída do restaurante, sugeriu a ida a um club de dança, depreendendo das palavras de Rosalba que ela ainda não queria ir para casa. A noite estava tão agradável e ainda era uma criança.
.


"Pão e Túlipas" (os bilhetes)

.
Gosto muito de um dos rituais que se cria desde o início no relacionamento entre Fernando e Rosalba: todas as manhãs ele prepara-lhe o pequeno almoço, abundante em pão (em parte é daí que vem o título do filme) e noutras coisas apetitosas, e deixa-lhe quase sempre um bilhete. O tom é sempre muito respeitoso, mas entre as linhas talvez seja possível notar o tímido aflorar de um sentimento maior.
.


"Pão e Túlipas" (Rosalba)

.



.Rosalba Maresanto Barletta, casada desde os seus vinte anos, mãe de dois adolescentes. A encruzilhada dos seus quarenta anos passa muito pelo seu
casamento infeliz e pela insatisfação com a sua vida em geral. Aproveita o facto de ter sido deixada para trás numa excursão para rumar sozinha até Veneza, cidade aonde nunca fora e que sempre lhe despertara a curiosidade.Se Fernando tem um apelido de flor que tem quase por sua força motriz o sol, já Rosalba é um nome de flor que engloba o elemento luz que vai operar um verdadeiro renascimento (alba) na sua própria vida e na de Fernando..
.
De um estado inicial pautado pelo ar desleixado e melancólico, vêmo-la desabrochar à medida que vai encontrando o seu rumo individual. E nisso parece haver um paralelo com as belas flores de que cuida na loja onde trabalha. Pela primeira vez é livre de fazer o que quer e o que bem lhe apetece. E isso nota-se na sua nova forma de estar. O seu olhar acende-se, o seu rosto ilumina-se ao tocar acodeão. (O acordeão que ela desencantou do armário em casa de Fernando). A rotina em que se havia tornado a sua vida, fez com que já nem se lembrasse que possuía um verdadeiro dom. Quando toca, fá-lo de forma magistral, entrega-se totalmente à música que lhe vem do fundo, deixando a sua amiga Grazia embevecida. É sem dúvida uma mulher de força.

.


"Pão e Túlipas" (Fernando)

.
Fernando Girasole
, que como o nome indica deveria mover-se em função do "sol". Em lhe faltando o "sol" desde há vários anos, terá esmorecido a olhos vistos. No seu olhar doce, meigo, triste, adivinha-se-lhe parte do vazio. O que se confirma a um ponto extremo quando entramos no seu quarto. Do tecto pende uma corda de forca, que ele se apressa a esconder debaixo da cama, antes de ir abrir a porta. E é assim que Rosalba entra na sua vida, como o sol pelo qual ele já nem se recordava que ansiava. Islandês, ex-cantor a bordo de cruzeiros, empregado de mesa num restaurante. Gosta de recitar o “Orlando Furioso” até ao ponto que a memória lhe permite. É um avô dedicado, que todas as manhãs vai buscar Elísio, o seu neto, para o levar ao cais, onde embarca rumo à escola.
.



"Pão e Túlipas" (Grazia)

.




.
Grazia, esteticista-massagista, seguidora dos preceitos holísticos, que em casa recebe a clientela com mãos de fada, vizinha de Fernando. É a má canalização no seu apartamento que proporciona o encontro com Rosalba: a amizade entre ambas nasce sob as águas baptismais de um cano roto. As mãos de Grazia são especialmente sensíveis à proximidade e ao toque da pele de Constantino. Pode dizer-se que antes de mais ela se apaixona pela aura que emana dele. Só mais tarde é que os seus dotes de canalizador se revelarão úteis. Ai as ambiguidades...
.


"Pane e Tulipani" (Pão e Túlipas) de Silvio Soldini - 2000

.

.
Um filme de uma grande candura, em que transparece um olhar meigo e divertido ao longo de quase todas as falas e situações. À nossa frente desfila uma galeria de personagens, cheios de bons sentimentos, com um fundo bom e algumas esquisitices que lhes conferem uma aura irresistível. Entre elas vou destacar algumas:
O sr. Barletta, negociante em retretes e artigos ligados à canalização (as conversas ao jantar são do mais estimulante...), possessivo, egocêntrico, trai a mulher com a cunhada, não mexe uma palha em casa, sente a falta da mulher (Rosalba) não por especiais saudades dos seus carinhos ou do seu amor, mas sobretudo porque lhe faz falta alguém que faça a lida da casa. O homem é execrável.
Constantino
, canalizador um tanto pró anafado, atirador de setas nos tempos livres, solteiro e bom rapaz que ainda vive em casa da mãe, leitor compulsivo de policias ("Quantos?" pergunta-lhe o sr. Barletta. “Deixe-me pensar...”, ar pensativo e quase de imediato: “285 livros e meio...” – aquele “e meio” é um número que impressiona), sendo esta a valência que o leva a ser contratado como detective, apesar da sua total inexperiência no campo. O seu objectivo: localizar Rosalba, que se encontra algures em Veneza.
Fermo, o velho e irascível dono de uma loja de flores, anarquista de peito e alma, que se insurge com uma cliente e a espanta para fora, quando esta se mostra interessada em comprar flores-de-lis para uma festa de aniversário, o que ele considera despropositado e demasiado aristocrático para o seu gosto.
.



domingo, setembro 24, 2006

Um sono feliz


Permaneço calado como a noite. Faço por não me chegar ruído algum do exterior e calo todas as vozes dissonantes que se atrevam a quebrar o silêncio. Fiz da noite uma espera doce. À despedida, o olhar que lhe adivinhei e a doçura das suas palavras fizeram-me sentir o mais feliz dos homens. E é tudo quanto quero reter até que me invada o sono.




Duas gotas que se tentam tocar...

.

(daqui)
.


sábado, setembro 23, 2006

N'O Barbeiro' **

.
Fui cortar o cabelo ao barbeiro do costume**. (O costume é prática que se arrasta desde a infância). A barba também precisava de um desbaste, mas não é tarefa que deixe em mãos alheias. Desaconselha-me o exemplo por que passa o meu couro-cabeludo. (Estou a exagerar um bocadito).
Pergunto-me: porque persisto em lá ir passados todos estes anos? É que pesando bem os prós e os contras, estes últimos infligem uma cabazada aos primeiros. Mas ainda assim faço por ignorar o resultado do marcador e continuo masoquistamente a lá ir. E sempre quando de lá saio, repito para mim mesmo: “Nunca mais! Foi a ultima vez que cá puseste os pés...” Pois sim. Tempos depois, torno não só a pôr os pés, como lá deixo cabelo e mais cabelo (assustadoramente mais grisalho), juntamente com uns trocos e um “muito obrigado até à próxima”. Porque a preguiça e o comodismo são mesmo assim: deixam-me andar e avolumar as coisas. E as guedelhas já tinham um volume considerável, confesso.
Para dar nomes às coisas, neste caso aos contras, aqui vai então a lista:
- não ter direito a pré- ou pós-lavagem do cabelo
**;
- sair de lá, invariavelmente, com: 1) as orelhas a latejar, depois de testada a firmeza com que estão presas; 2) a testa, as orelhas e o nariz semeados de cabelos; 3) o pescoço a arder depois de bem regado com álcool etílico. Loções ou géis sem álcool é coisa efeminada entre estas quatro paredes.
- Quatro paredes espelhadas, que me permitem assistir
*
* à tortura de todos os ângulos possíveis e inimagináveis.
- Pior que tudo isto, o senhor barbeiro insiste em querer fazer-me o penteado com o risco ao meio
*
*. Parece ter uma verdadeira tara por bandós (e nisso contradiz-se com o musculado e irritante álcool etílico) e por penteados retrógrados. (Dantes, quando a minha meninice não encontrava palavras mais veementes que se insurgissem contra tais práticas, só me restava olhar ao espelho e ser directamente transportado para o interior de um daqueles daguerreótipos de finais do século XIX). Felizmente, os anos fortaleceram o meu direito à discordância e a fazer valer o meu direito. Crescidote, tenho meios para dar particular ênfase a matérias tão sensíveis como a distribuição pilosa all over my head. Quando o vejo a agarrar o pente e a ensaiar esse gesto ominoso, escapa-se de imediato da minha boca um “Deixe tar, que eu depois ajeito isso...”, ao qual, renitente, me responde distribuindo ainda timidamente uns cabelitos para um lado e para o outro segundo a divisória tão perfeita que me parece um marco na estrada. Já ao meu insistente: “A sério, deixe 'tar isso, que eu depois penteio-me ao meu gosto...”, ele não pode senão resignar-se com um: “Tá bem, fazes à tua maneira...”
Construir a lista dos prós parece-me mais complicado. Não por eu ser natural ou excessivamente do contra, mas simplesmente porque há lá coisas que são mesmo complicadas. Por isso fico-me por pequenas notas bucólicas de rapazote. No mostruário sob o espelho enorme, chama-me a atenção, entre as mais variadas loções para a barba, after-shaves, utensílios cortantes, etc., a quantidade de preservativos, das mais diversas marcas. Quem reina sobre todos eles é o “Control”. (Tem lógica). Mas onde é que eu estou afinal?... Na parede ao meu lado direito, o inevitável calendário. Não de mulheres em trajes menores ou sem trajes sequer
*
*, mas de teor mais católico... (que a igreja não dista muito daqui, não senhor, e a hora da missa não tarda...). O rádio ou está desligado ou está a relatar um jogo de futebol ou está em modo pimba. Só parece ter essas três funções. Hoje estava em modo off. (modo uff !). O senhor é simpático, aprecia o silêncio (o modo off ajuda), mas não se nega a um dedo de conversa quando se trata de um bom petisco, regado (não com álcool etilico) mas com um bom tinto. Admito que ambos, na presença de um e do outro, não puxamos pela verborreia.** Deixo-me estar quietinho, digo algumas baboseiras de circunstância e as tesouras que façam o resto. E o resultado está à vista: um corte de cabelo tótó, que tento disfarçar com gel.

** Ou "The man who wasn't there", segundo a tradução dos irmãos Coen.
** Ou melhor, o costume passava por intercalar a ida a este e a um outro. Esse outro por artes inexplicáveis do seu métier deixava-me um volume protuberante ao nível da nuca, que mais parecia uma bola de cabelo.
*
* é que no outro tinha direito...
*
* sentadinho na cadeira rotativa mais retro que conheço.
*
* para mim, o equivalente em forwind ao separar das águas do mar**... como é que se chamava mesmo o mar que o Moisés... Adiante. A ideia é**: neste meu caso, assim que o mar (pouco ondulante) dos meus cabelinhos é dividido ao meio por acção desse bastão de Moisés que é aquele pente de má memória, deixando bem à vista** uma linha branca de couro cabeludo, acontece que por minhas mãos os cabelos envolventes abatem-se logo para não deixar qualquer vestígio da ominosa separação...
*
* vulgo descascadas.
*
* vermelho, pois claro. Ah ganda wiki! E já as estrelas mo pareciam querer dizer também...
*
* A ideia é: confusa. Saiu assim e assim ficou.
** bem à vista de todas as lâmpadas, inclusivamente.
**
Mas também não somos nenhum Billy Bob Thornton como no filme dos irmãos Coen.
.



sexta-feira, setembro 22, 2006

Post "só porque sim"


Teclo furiosamente. (O meu “furiosamente” deixaria muito a desejar se fosse dactilógrafo, mas como não sou...). Os olhos pesam-me mais que a tonelada que carreguei ao peito ao longo do dia. Algumas palavras via sms, muito bonitas, muito intensas, bastaram para me desembaraçar de todo esse peso. O peito fez-se peito de novo, a modos que a conseguir respirar com alguma normalidade e sem aquele batimento caótico que impõe um ritmo alucinante aos pensamentos mais díspares.

Com os meus irmãos em tierras de Espanha e como se não bastasse a falarem cada vez melhor o castelhano, tenho-me sentido solo. O que hei-de dizer? Tivesses sido mais esperto e também andarias por lá... Adiante, que não estou a gostar deste tom... Se começas a fazer beicinho, amanhã acordas com má cara... o que não dá jeito nenhum, visto que amanhã é dia de fazeres a barba... E perguntam vocês: "Mas como é que não dá jeito nenhum para...". Bem, isso é cá comigo e com os espelhos... Por aí não, que também não estou a gostar e já nem parece meu...

Neste momento, ao longe, o canto fora de horas de um galo com péssimo sentido de orientação (solar, evidentemente), teima em fazer-se ouvir. Deve ser daqueles que tremem todos por dentro, quando berram: “primeiros!”. É precoce o galito, só pode. O alvorecer ainda lhe deve parecer um conceito estranho, ou então anda à bulha com uma insónia.

Depois desta pequena nota campestre, pouco me sobra para dizer, além de mais notas campestres. Sim, o campo é realmente muito absorvente. Especialmente à noite, quando as poucas luzes (já não são assim tão poucas por estas bandas) não constituem obstáculo de maior às estrelas que vão pontuando o céu.

A música desliguei-a há uns minutos, uma pessoa também tem que se dar uma pausa e apreciar o silêncio. A música da natureza também sabe bem. Se viverem na cidade e tiverem um desses cd’s ricos nos mais variados sons do reino animal e mineral, aconselho. Mas nada melhor que o original, claro. Por exemplo, do relvado frente ao meu quarto sobem até mim uns rumores esquisitos... Insectos? Mamíferos? Não sou entomologista, nem o Gregor Samsa (mamífero sou, mas neste caso pouco ajuda) para distinguir se são de cópula ou não. (O teclar furiosamente ao fluxo da consciência tem destas coisas, leva-me inconscientemente para aí...). Por vezes, certos rumores desencadeiam pensamentos de outra ordem, que por sua vez nos reenviam para pensamentos de uma outra ordem e que por sua vez... E também isso pode ser absorvente... “Restricted area!” diz-me o fluxo de consciência. Ok, não vamos por aí...

Há tanta coisa sobre a qual queria falar e nunca o faço... nem sei bem porquê. A preguiça dá o seu contributo, claro. E para não a contrariar acho melhor parar por aqui.



Jewel



Foto de Helmut Newton

Quem encontra um diamante, por nada deste mundo quer perdê-lo. E não é de posse que falo. Longe disso.




Palavras que são como...




Heather Doyle-Maier, Awakening
.

...despertares, injecções de adrenalina, desdobramento e apuramento dos sentidos, sinestesias, olhos dentro de nós que olham em todas as direcções e só encontram motivos para sorrir (por vezes fechamo-nos num rosto impassível quando o clima à nossa volta não se coaduna com grandes efusões, e só por isso não sorrimos e nos controlamos para não pular)...



quinta-feira, setembro 21, 2006

Apenas um sono tranquilo






"Apenas uma palavra. Uma súplica apenas. Apenas uma aragem. Apenas uma prova de que ainda estás vivo e à espera. Não, nada de súplicas, apenas um respirar, respirar não, apenas estar pronto, estar pronto não, apenas um pensamento, um pensamento não, apenas o sono tranquilo."

in "Parábolas e fragmentos" de Franz Kafka (tradução de João Barrento)



Seriedade e outras máscaras




A seriedade enquanto máscara de uma tristeza profundamente embutida no ser. A seriedade assusta-me, sempre me assustou. Assim como a máscara mais superficial de todas: a do riso fácil e histriónico.
.


quarta-feira, setembro 20, 2006

Livro dos dias

.
No livro dos dias - hesito em chamar-lhe diário, dado que não é bem essa a ideia que tenho em mente - há folhas em que só me apetece intrometer um daqueles marcadores com belas citações (daquelas frases certeiras a dar conta da essência desse mesmo dia). Outras folhas pedem mesmo para serem escritas com letras garrafais e em cores garridas, quando o estilo, o ritmo da escrita e as palavras em si não bastam para atrair a atenção do que quero inolvidável. Do que quero bem à vista, assim que as desfolhe ou sempre que me sinta compelido a voltar a elas para me fortalecer.
.


terça-feira, setembro 19, 2006

Nocturno com um sorriso

.
Ira Cohen, photo of William S. Burroughs


Sorrir custa no máximo um fotograma. Seja a cores ou a preto e branco, vale bem o preço.




Vida - a luta pelos "direitos de autor"


Ao longo dos dias intermediamos estadias por zonas nevoentas e solarengas. Desses ciclos, vamo-nos reerguendo enquanto personagens de um livro sempre por reescrever. É a nossa maldição de autores insatisfeitos, com os direitos sobre a obra de modo nenhum assegurados à priori. Felizmente, a matéria-prima (a experiência de vida), que se vai renovando e refinando nas nossas mãos, faz-nos crer que o capítulo seguinte possa inovar em substância e em qualidade relativamente ao anterior.


segunda-feira, setembro 18, 2006

Nick Drake - Things behind the sun

.

.
Please beware of them that stare
They'll only smile to see you while
Your time away
And once you've seen what they have been
To win the earth just won't seem worth
Your night or your day
Who'll hear what I say.

Look around you find the ground
Is not so far from where you are
But not too wise
For down below they never grow
They're always tired and charms are hired
From out of their eyes
Never surprise.

Take your time and you'll be fine
And say a prayer for people there
Who live on the floor
And if you see what's meant to be
Don't name the day or try to say
It happened before.

Don't be shy you learn to fly
And see the sun when day is done
If only you see
Just what you are beneath a star
That came to stay one rainy day
In autumn for free
Yes be what you'll be.

Please beware of them that stare
They'll only smile to see you while
Your time away
And once you've seen what they have been
To win the earth just won't seem worth
Your night or your day
Who'll hear what I say.

Open up the broken cup
Let goodly sin and sunshine in
Yes that's today.
And open wide the hymns you hide
You find reknown while people frown
At things that you say
But say what you'll say
About the farmers and the fun
And the things behind the sun
And the people round your head
Who say everything's been said
And the movement in your brain
Sends you out into the rain.
.
* 6ª faixa do álbum Pink Moon (1972).
.


Eu sei, a efeméride já data de há uns dias atrás, mas como nunca aqui escrevi nada sobre o 11 de Setembro de 2001...

.



.
Nesse dia [11-09-2001] estava a estudar ao som do "Vespertine"* da Björk, enquanto o meu gatinho** (tinha cerca de 3 semanas) tentava trepar pelas minhas pernas acima para se aninhar no meu colo. Por um lado sentia-me como uma daquelas figuras representadas num quadro de interiores (bem instalado, sentado e sereno***, alvo da atenção de um gatinho), enquanto pela televisão me chegavam essas imagens de puro horror que em tudo contrastavam com a normalidade em meu redor. Chocou-me imenso, como a todas as pessoas. O estudo nem pensei mais nele sequer. A tarde passei-a agarrada ao ecrã da TV, a trocar impressões, dúvidas, incompreensões...

O mundo tornou-se mais cinzento. Pelo menos o mundo que nos chega pelos noticiários. Mas não é cor que queira impingir à minha vida. Cada um à sua maneira deve fazer o mesmo. Não num sacudir de capote, nem fingir que nada se passa à sua volta (ainda que distante), nem que nada nos atinge. Mas também não ir ao outro extremo que é sofrer pessoalmente com cada dor que nos chega via TV. Imaginem o que seria se não nos conseguissemos "desligar" um pouco do teor das notícias? Daríamos em doidos, viveríamos num sofrimento constante pela dor alheia. Talvez a TV nos conduza a alguma insensibilidade pelo carácter repetivo dessas notícias, pela habituação (se é que se pode falar nesses termos) que se gera aos níveis de violência...

Quando alguém se implode num autocarro... que podemos nós fazer pelas vítimas? Geralmente fazemos pouco ou nada. Condenamos o acto, enraivecemo-nos, lamentamos, sentimos tristeza e empatia para com o sofrimento dos familiares... Mas para além disso que fazemos de concreto?

Importante é não nos alhearmos das nossas vidas, nem das pessoas que nos rodeiam, das que verdadeiramente gostamos, das que nos são próximas. Em relação a elas não temos que nos sentir de mãos atadas quando pressentimos algum problema. Está ao nosso alcance ajudá-las quando precisam. Aí e no nosso dia-a-dia podemos dar o nosso contributo, fazer algo de palpável.
.
* Até à data, o meu álbum preferido dela.
**
Inicialmente estava contra a sua vinda para nossa casa. Mas depois afeiçoei-me a ele. Agora é o protótipo do vadio que já não liga nada a ninguém, a não ser quando lhe interessa ou lhe cheira ou simplesmente porque dá-lhe em sentir-se carente e a apetecerem-lhe mimos.
*** Eu sereno a estudar? Deves estar parvinho de todo...
.
P.S. Este post foi repescado na íntegra de um comentário que tinha feito a um post no blog Dona-Redonda. Não é meu costume aproveitar comentários meus para fazer deles posts. Fi-lo agora porque me dou conta que não fiz aqui nenhuma referência aos cinco anos volvidos sobre o trágico 11 de Setembro e porque sou demasiado preguiçoso para escrever um de raíz.
.


sexta-feira, setembro 15, 2006

Flying away from the cage

.

(daqui)
.
" (...) são as pessoas que têm mais medo de tudo que ao mesmo tempo poderiam fazer as coisas mais arriscadas (...) É o medo que dá a coragem de arriscar. Arriscar tudo pode ser preferível a ficar-se sozinho com o medo."
.
in "Os Cavalos de Tarquínia" de Marguerite Duras.
.


Papel dificil



Fugir, esconder-me. Não mais me dividir. Versões antagónicas acabam por se virar contra o "intermediário" desajeitado. E este em vez de prestar auxílio, acaba ferindo, por inépcia sua, os que nele confiaram.



quinta-feira, setembro 14, 2006

Portos de abrigo em cidades imensas

.

Max Ernst, La Ville entière (1935-37)



Perdi-me numa cidade imensa. A princípio errei desnorteado, mas depressa encontrei refúgio e um abraço em cada um dos seus cantos. Aqui, onde o olhar do estranho que passa menos se faz sentir, conheci almas tão belas e verdadeiras, que finalmente me ajudaram a interromper o ciclo nómada. Acabei por criar raízes em tal profundidade, que se apaziguou em mim (sem embora se extinguir) a sede de outros lugares, de outras gentes, de outras sensações... Não precisei de procurar mais: tinha encontrado a fonte. A fonte da qual não mais me separaria, porque daí em diante a traria em mim, guardada a sete chaves, num baú que em nada anulava o seu doce rumor. A curiosidade do novo, essa, mantinha-se viva em mim, observando sempre em redor, sondando por novos sítios, sorvendo o frémito geral. O olhar mudara, era agora mais calmo, com menor tendência a dispersar-se. O sentir deixara de bater ao compasso de uma vontade estranha, quase extra-corpórea de tão impulsiva. E havia o doce rumor da fonte, minha segunda voz, que me alertava para os riscos da dispersão e me fazia correr de braços abertos para o porto de abrigo.
.
(O Rumo Que Dou A Certas Ficções)
.


Insónias





Os lençóis irritam-me porque não te envolvem. Porque permanecem frios na tua ausência. Porque o meu corpo revira-se de impaciência e eles não se calam enquanto também eu não me sossegar. Querem-me em posição de quem sofre sossegadamente, sem arrojos, nem movimentos. Só não os afastei, só não os mandei ao ar, nem rasguei de cima a baixo, porque me agarro à ideia de que ainda possas chegar, pela calada da noite, e que eles ainda nos possam envolver aos dois.


(O Rumo Que Dou A Certas Ficções)



Calar as dores. Gerir os silêncios.

.
"Tu, neste momento, calas palavras contra mim, pelo menos há quatro dias (...) E essas palavras fazem-te mal, tenho a certeza".
.
in "Os Cavalos de Tarquínia"de Marguerite Duras.
.


Nova rodada

.


.
Quando tudo se esgota
torna-se a encher a taça
de onde se continuará a beber...
.


quarta-feira, setembro 13, 2006

Eterno itinerante

.

Pablo Picasso, Family of Saltimbanques (1905)
.
.


Eterno itinerante
.
Quando chego, já em mim a náusea se revolve,
conduz-me pela trela à sua vontade,
incita-me a partir, proíbe-me de ficar.
Eterno itinerante, natural de parte nenhuma,
não avisto destinos nem fixo lugares.
.
2002


terça-feira, setembro 12, 2006

Wishes

.
Não se sobrevive sem ilusões, mas nem só disso vive o Homem. Dá jeito que algumas se concretizem e se possam fruir. E já agora que se prolonguem dessa forma por tempo indefinido. Até ao último dos dias, se não for pedir muito. Será que exagerei no pedido, soltei amarras e fui parar a outra ilusão?
.


Fracções que podem mudar uma vida

.
A fracção de segundo que dura uma ilusão: ele sorriu, mas não disse nada; ela, por sua vez, nem sorriu, nem disse nada. Ambos foram às suas vidas: ele, com uma ilusão a menos, mas ainda assim a sonhar com dons telepáticos e com uma próxima vez, para depois concluir taxativamente que a vida é mesmo isto – o esboroar gradual de ilusões. Ela, sem se se ter apercebido de nada, seguia com toda a normalidade, alheia aos turbilhões que costumava despertar à sua passagem.
.
(O Rumo Que Dou A Certas Ficções)
.



Intelectos

.
Ouve-se dizer que as elites, e por inerência, também as elites intelectuais se auto-preservam. Será que o hábito de intelectualizar os sentimentos é uma forma de auto-preservação tão válida quanto a de intelectualizar outra coisa qualquer?
.


Onde cada um pode ouvir bater o seu

.

.
"O enigma,
diz-nos, sou eu - este coração que cabe
em todos os corpos. E onde cada um pode ouvir bater o seu, mesmo que só o silêncio
nos rodeia, ao passar por esta pedra, e
descobrir nela, ínfima, toda a vida humana."
.
Nuno Júdice in "Geografia do Caos" (Assírio & Alvim, 2005)
.


segunda-feira, setembro 11, 2006

Pragmatismo

O dia lá fora parece-nos sempre mais bonito quando, por qualquer motivo, não nos é permitido desfrutá-lo. Efeito fruto proibido, ou de colheita difícil ou nunca plenamente saboreada, dada a circunstância de haver tarefas pendentes.

O peito estreita-se, subjugado ante as obrigações. O corpo impacienta-se e as pernas só querem correr lá para fora. A mente voa por altitudes tão díspares, que não apreende um significado que seja de alguma coisa prática. A memória é uma parede maciça que devolve todas as bolas que a queiram atravessar.

Queria conseguir. Por mim. Mas não só. Por um futuro sonhado, entrevisto e sentido de forma tão real. E é este sonho que me ajuda a descer aos poucos de certas nuvens (por onde salto de umas para as outras, leve como uma pena), e a aproximar-me da consciência do que é suposto ser feito. Nunca foi fácil para mim ser pragmático. E parece-me que ainda assim é ao sonho, à efabulação (mas com raízes que a impedem de se dispersar na inconsequência) que tenho de recorrer para passar a sê-lo.



O percevejo e o best-seller

.
Hoje é a sério. Tem de ser. Vou embrenhar-me na leitura de um dos best-sellers de Física Geral (pelo menos no meio estudantil). O livro a que toda a gente se refere por "Tipler", o nome do ilustre autor.
Decomposição da palavra Tipler nos termos que me dizem respeito:
Tip - de dicas estou eu bem necessitado para saber por onde começar a escarafunchar, qual percevejo esfomeado, não por celulose, mas por um mínimo de conhecimento que me permita fazer a cadeira.
Ler - por experiências anteriores posso adiantar que se trata de uma leitura que embala. Espero no entanto não adormecer desta vez. O percevejo - que decidi que nas próximas duas semanas tem mesmo de haver em mim - não ia gostar nada.


Subtil



Fartei-me de rir quando um rapaz, que acariciava os cabelos da namorada, lhe disse:

"Tu excitas todas as pessoas..."

Ainda hoje não deixo de rir do que talvez fosse suposto ser um mimo.





sexta-feira, setembro 08, 2006

Karaoke


Nunca tinha assistido a uma noitada de karaoke. Gente linda, com ar jovem e saudável, bem-disposta, reunida num bar, com o simples desejo de passar alguns bons momentos. E foram muitas as vozes bonitas que pude ouvir. Bons momentos, portanto. Algumas mais desajeitadas, mas com espírito de entrega. E o que conta é mesmo isso: o desejo de participar, de partilhar algo de muito seu: a voz. E toda a voz é especial, porque é única, pessoal.
Tónica da noite: conversas, piadas, bebidas, cigarros, desafios para que a C. cantasse; olhos colados nos ecrãs, a acompanhar o desfile das letrinhas, e ouvidos alertas quanto à correspondência em termos de timing. Outras vezes olhávamos directamente para as pessoas que cantavam, deixando-nos fascinar pela variedade de expressões por que passa um rosto que canta. Por vezes havia o receio da pessoa se estatelar ao comprido, quando tentava ir por outras vias. Mas o canto é um acto de liberdade, suficientemente livre para encorajar novas soluções. E a pessoa, improvisando, lá se safava e saía por cima.
Muito obrigado a ti E. e a ti C. por esta noite tão linda!



Luna

.


Eclipse anelar da lua

.
Estava lua cheia quando saí. Um espectáculo para a vista, quando as nuvens a deixavam a descoberto. Uma luz espectral descia sobre os volumes e, ao passarmos por eles, ia reparando nas sombras recortadas no chão. Disseram-me que algures tinha sido possível assistir ao eclipse parcial da lua. Gosto especialmente do eclipse anelar. A sombra da terra projecta-se na superfície da lua, deixando apenas uma orla, um anel. E é então que devaneio um pouco: terra e lua renovando votos de núpcias uma à outra?... É verdade que têm andando "agarradinhas" uma à outra desde há imenso tempo. E certamente para durar. Mas é bonito de tempos em tempos irem renovando os votos, como fazem aqueles casalinhos de muita idade cujo amor não esmoreceu nem um pouco com o passar dos anos.
.


Montanha-russa




Subo e desço-me como numa montanha-russa. Lento na subida, veloz na descida. Não me sacio apenas com uma volta. Vai daí: torno a subir e a descer-me. E os dias decorrem assim. A desafiar os limites da gravidade. Aos safanões. Sobre carris que descrevem curvas apertadas e loopings que me fazem olhar para baixo como se o solo passasse a ser o meu limite e o céu cessasse de existir. O que vale é que a vertigem dos loopings é passageira.




quarta-feira, setembro 06, 2006

Words just like nails



(daqui)
.
.

"Gosto da palavra suicídio."
"É sempre tempo de rebentar (...)"


in "Photomaton & Vox" de herberto helder.
.


Engate: efeito National Geographic





Keith Mallett, Les Sirens


No mundo selvagem, o predador tenta ao máximo passar despercebido no momento da caça. Não passa pelos seus instintos, que ele e a suposta presa estabeleçam contacto visual de qualquer grau que seja. Pelo menos não antes de ele já estar a trinchar a jugular da presa.
Ora no mundo da night, parece passar-se o inverso. Ainda que, consoante a habilidade do predador, este até possa mover-se inicialmente nas franjas de alguma discrição para obviamente não afugentar o bom partido que a sua apurada visão periférica se tornou exímia em captar. Mas de facto o eye-contact é deveras importante numa primeira abordagem. Olho para mim, para os longos cílios (ainda há dias, para minha surpresa e certo embaraço misto de prazer, me fizeram tomar consciência das minhas pestanas) que me contornam os olhos e penso: "Se te aplicasses, poderias fazer disso uma arte..." Pois sim.





Um amigo meu chamou-me a atenção para uma tentativa de engate em progresso (work in progress, muito pouco artístico por sinal), que decorria praticamente à nossa frente. Por uns instantes, julguei que aparecesse ali o David Attenborough, silenciosamente a afastar os obstáculos e a comentar a trajectória e a técnica de aproximação à presa, as subtilezas do contacto visual, etc. Até podia ser que assistindo ao que parecia ser um documentário em directo, eu aprendesse alguma coisa (hum... com exemplos destes não me parece). Já agora pedia que fosse legendado, é que o som quase ensurdecedor que ressoa na selva dos bares nocturnos desaconselha qualquer tipo de dobragem.
(Post requentado de há cerca de dois meses atrás e que só agora me apeteceu que visse a luz do dia. Quem me conhece, sabe que esta visão das coisas não corresponde exactamente à minha.)