N'O Barbeiro' **
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** Ou "The man who wasn't there", segundo a tradução dos irmãos Coen.
Fui cortar o cabelo ao barbeiro do costume**. (O costume é prática que se arrasta desde a infância). A barba também precisava de um desbaste, mas não é tarefa que deixe em mãos alheias. Desaconselha-me o exemplo por que passa o meu couro-cabeludo. (Estou a exagerar um bocadito).
Pergunto-me: porque persisto em lá ir passados todos estes anos? É que pesando bem os prós e os contras, estes últimos infligem uma cabazada aos primeiros. Mas ainda assim faço por ignorar o resultado do marcador e continuo masoquistamente a lá ir. E sempre quando de lá saio, repito para mim mesmo: “Nunca mais! Foi a ultima vez que cá puseste os pés...” Pois sim. Tempos depois, torno não só a pôr os pés, como lá deixo cabelo e mais cabelo (assustadoramente mais grisalho), juntamente com uns trocos e um “muito obrigado até à próxima”. Porque a preguiça e o comodismo são mesmo assim: deixam-me andar e avolumar as coisas. E as guedelhas já tinham um volume considerável, confesso.
Para dar nomes às coisas, neste caso aos contras, aqui vai então a lista:
- não ter direito a pré- ou pós-lavagem do cabelo**;
- sair de lá, invariavelmente, com: 1) as orelhas a latejar, depois de testada a firmeza com que estão presas; 2) a testa, as orelhas e o nariz semeados de cabelos; 3) o pescoço a arder depois de bem regado com álcool etílico. Loções ou géis sem álcool é coisa efeminada entre estas quatro paredes.
- Quatro paredes espelhadas, que me permitem assistir** à tortura de todos os ângulos possíveis e inimagináveis.
- Pior que tudo isto, o senhor barbeiro insiste em querer fazer-me o penteado com o risco ao meio**. Parece ter uma verdadeira tara por bandós (e nisso contradiz-se com o musculado e irritante álcool etílico) e por penteados retrógrados. (Dantes, quando a minha meninice não encontrava palavras mais veementes que se insurgissem contra tais práticas, só me restava olhar ao espelho e ser directamente transportado para o interior de um daqueles daguerreótipos de finais do século XIX). Felizmente, os anos fortaleceram o meu direito à discordância e a fazer valer o meu direito. Crescidote, tenho meios para dar particular ênfase a matérias tão sensíveis como a distribuição pilosa all over my head. Quando o vejo a agarrar o pente e a ensaiar esse gesto ominoso, escapa-se de imediato da minha boca um “Deixe tar, que eu depois ajeito isso...”, ao qual, renitente, me responde distribuindo ainda timidamente uns cabelitos para um lado e para o outro segundo a divisória tão perfeita que me parece um marco na estrada. Já ao meu insistente: “A sério, deixe 'tar isso, que eu depois penteio-me ao meu gosto...”, ele não pode senão resignar-se com um: “Tá bem, fazes à tua maneira...”
Construir a lista dos prós parece-me mais complicado. Não por eu ser natural ou excessivamente do contra, mas simplesmente porque há lá coisas que são mesmo complicadas. Por isso fico-me por pequenas notas bucólicas de rapazote. No mostruário sob o espelho enorme, chama-me a atenção, entre as mais variadas loções para a barba, after-shaves, utensílios cortantes, etc., a quantidade de preservativos, das mais diversas marcas. Quem reina sobre todos eles é o “Control”. (Tem lógica). Mas onde é que eu estou afinal?... Na parede ao meu lado direito, o inevitável calendário. Não de mulheres em trajes menores ou sem trajes sequer**, mas de teor mais católico... (que a igreja não dista muito daqui, não senhor, e a hora da missa não tarda...). O rádio ou está desligado ou está a relatar um jogo de futebol ou está em modo pimba. Só parece ter essas três funções. Hoje estava em modo off. (modo uff !). O senhor é simpático, aprecia o silêncio (o modo off ajuda), mas não se nega a um dedo de conversa quando se trata de um bom petisco, regado (não com álcool etilico) mas com um bom tinto. Admito que ambos, na presença de um e do outro, não puxamos pela verborreia.** Deixo-me estar quietinho, digo algumas baboseiras de circunstância e as tesouras que façam o resto. E o resultado está à vista: um corte de cabelo tótó, que tento disfarçar com gel.
** Ou "The man who wasn't there", segundo a tradução dos irmãos Coen.
** Ou melhor, o costume passava por intercalar a ida a este e a um outro. Esse outro por artes inexplicáveis do seu métier deixava-me um volume protuberante ao nível da nuca, que mais parecia uma bola de cabelo.
** é que no outro tinha direito...
** sentadinho na cadeira rotativa mais retro que conheço.
** para mim, o equivalente em forwind ao separar das águas do mar**... como é que se chamava mesmo o mar que o Moisés... Adiante. A ideia é**: neste meu caso, assim que o mar (pouco ondulante) dos meus cabelinhos é dividido ao meio por acção desse bastão de Moisés que é aquele pente de má memória, deixando bem à vista** uma linha branca de couro cabeludo, acontece que por minhas mãos os cabelos envolventes abatem-se logo para não deixar qualquer vestígio da ominosa separação...
** vulgo descascadas.
** vermelho, pois claro. Ah ganda wiki! E já as estrelas mo pareciam querer dizer também...
** A ideia é: confusa. Saiu assim e assim ficou.
** bem à vista de todas as lâmpadas, inclusivamente.
** Mas também não somos nenhum Billy Bob Thornton como no filme dos irmãos Coen.
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2 Comentários:
Fantástica esta descrição da tua ida ao barbeiro, dá para imaginar a tortura... não foi assim tão grande porque o rádio estava em “modo uff!” :)
Preservativos era coisa que não imaginava que se vendesse em barbeiros...
Beijinho
Ana: imagina o que é um rapaz desde tenra idade de olhos postos num montinho de preservativos... :) Beijinho.
Zé: tenho de pensar em escrever mais posts assim... gosto de saber que o pessoal se ri às custas das minhas sessões de tortura :) As hipotéticas piadas que se possam encontrar aqui, não te soaram a tortura, pois não? Tenho receio que esse "partir a rir completamente" seja o triste resultado de me ter aventurado demasiado e de sem querer ter feito uso de alguma técnica de tortura chinesa... :)
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