sexta-feira, setembro 29, 2006

Monólogos interiores

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Fotograma do filme A Clockwork Orange de Stanley Kubrick (1971). Na parede um poster do grande Ludvig Van, de que Alex (o protagonista do filme) era acérrimo fã.
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♪♪ Beethoven - Sonata for Piano No. 26 'Les Adieux' in E flat, Op. 81a

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- Desde já lhe digo que discordo da ideia de refrear os sentimentos...
- O que quer que lhe diga?!... Meu caro, nesta vida tudo se domestica...
- Ora... como pode dizer tamanho disparate?
- Vai-se vivendo com isso e com disparates de outro quilate até, se for preciso... Tente dar-lhe rédea justa e verá...
- Mas e a sensação da cavalgada livre? Para mim, algo de inestimável...
- Ficam as saudades e a espera por melhores dias. Sabe, se for em proveito de um bem maior, aguenta-se o trote lento...
- E não se estará a anular no seu direito de sentir?
- De forma alguma. Sinto para mim.
- Mas deixa de o poder expressar livremente... Vai portanto regressar à sua vidinha introspectiva?...
- Expresso-me como o tenho feito até então: por palavras. O que lhe pretendo dizer é que não se pode sobrepôr os nossos desejos aos efeitos negativos que daí advirão para os outros.
- Deixe-se disso... Não creio em sacrifícios abnegados... Não nos tempos que correm.
- Não se trata de carregar uma cruz. Nada disso. Se se pusesse no meu lugar, compreenderia...
- De modo algum me poria no seu lugar. Olho para si e enoja-me o seu ar de animal domesticado...
- É como lhe digo... Soubesse o senhor o que sinto e compreenderia as minhas razões. Provavelmente agiria do mesmo modo...
- Não tenho feitio para Prima Dona...
- Nem eu, meu caro. Nem para carpideira. Se persiste na confusão de termos...
- Fosse eu e mergulharia de cabeça...
- Como se ilude! Há alturas em que se tem de parar para pensar, dar tempo ao tempo. Querer o bem de todos, mesmo que isso implique um período de latência.
- O senhor fala como quem já viveu tudo o que tinha para viver. Mas pelo que sei de si, falta-lhe experienciar tudo. Se não aproveita agora, quando o fará?
- Não há nada a aproveitar. Não gosto da palavra. Não faz sentido falar em proveitos. O senhor não me entende, ou faz que não entende. Se alguma vez tivesse amado, e alguém lhe dissesse o que me acaba de dizer... achá-lo-ia desprezível. Além disso não tenho pressas...
- Eu referia-me a aproveitar a vida... É que você para mim é uma página em branco. Completamente em branco. Onde tudo permanece ainda por escrever... e o tempo urge sempre, meu caro.
- Vivi pouco, confesso. Mas querer precipitar as coisas, seria enviesar a página logo de início com linhas tortas...
- Sem o querer melindrar mais do que o que tenho feito até aqui, acho-o no mínimo um caso risível... querer ostentar uma maturidade, sem base real onde se possa sustentar...
- Essa “base real” de que fala, pode-se ir buscá-la não só às vivências, como também às nossas reflexões...
- Sem estarem fundeadas na experiência real, as suas reflexões de pouco valem...
- Subestima portanto o alcance do pensamento? Longe de mim querer equiparar-me: mas que dirá então dos mundos sem “base real” entrevistos pelos grandes pensadores?...
- Pois, já que me fala de ficções...
- A seu ver, ficciono, portanto...
- Ficciona a sua vida e tem-no feito desde que o conheço...
- Tudo isto é muito real, meu caro...
- A forma de lidar com ela é que não me parece... toda essa calma, confrange-me... Tenho-o observado, sabe. Por fora: um animal domesticado; por dentro: uma fera em gritos lancinantes... Estarei errado?
- Estou a lidar bem. A fera já se convenceu de que deu os gritos que tinha a dar... Tudo se aprende, é como lhe digo... até a calma e uma nova forma de estar.
- Desculpe que lhe diga, mas você não me parece ter estofo para tanto...
- A força do que sinto e a minha motivação conferem-me a argamassa de que necessito...
- Ora, ninguém é de betão... Tudo o que se domestica acaba por esmorecer... Repare só como o olhar de um felino se modifica ao longo do seu encarceramento...
- O felino tem desejos volúveis. Eu tenho certezas. Poucas, uma ou duas, mas suficientes. Sei que a minha alma tem um encontro marcado, mas só o futuro me dirá quando.
- Lérias... Não me faça rir.
- Ria o que quiser, mas não muito alto... que eu agora quero dormir...
- Então vou-me. Durma bem e veja lá se a sua saga não o leva também a domesticar os sonhos... Adieux, mon cher!
- Não se preocupe com os meus sonhos, saberei cuidar deles... Não lhe retribuo o adeus, porque é uma palavra demasiado categórica, soa a definitivo... Digo-lhe antes até já, porque no fundo (caso não o tenha percebido) é disso que se trata...

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