sábado, dezembro 23, 2006

"Improvisos"

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Chardin, Attributes of Music

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Improviso-me com todos os instrumentos que me chegam às mãos. Mas por muito que improvise e busque fórmulas novas, a música que toco nunca a consigo tornar do meu agrado. A exigência pode ser castradora se em excesso. Este, desde há muito, que é um movimento de arco interior, sem que no entanto me tenha alguma vez sentido dirigido por batutas. Talvez haja quem ache que façam falta. A esses contraponho: liberdade e independência acima de tudo. Mesmo nos erros e nas más escolhas. Do tema da batuta, pelo que tem de implícito em termos de imposição, sou levado a reflectir no exterior que me rodeia. O que me impressiona logo à partida é o peso do silêncio e da solidão. Ambos tornam-se em hábitos que assentam que nem uma luva a certos egos que perdem horas e horas a imaginar o que se passa lá fora, a esmiuçar cada acção do dia, cada gesto, cada palavra que proferiram ou que lhes foram dirigidos. Em suma: a remoer.
Somos um entre muitos músicos a dar o nosso pequeno contributo na elevação de uma massa sinfónica com peso e meios de locomoção? Se desse um concerto faria por evitar a tomada de consciência de que o provável seria não estarmos sós. Audiências? Responsabilidades a mais? Mas antes disso, as audições... que, ou nunca existiram, ou, naquelas a que ficciono ter ido, os poucos que aí se demoraram, na plateia ou noutro sítio qualquer, julgo que não o fizeram por consideração a mim: limitaram-se a passar o tempo à conversa, no conforto que o anonimato das brumas confere. De vez em quando uma ou outra mirada em direcção ao palco, onde para eles - eu que me dava conta de que actuava a solo sob potentes focos de luz - pura e simplesmente não existia. Seremos todos solistas sob um foco de luz que nos parece a nós que nos escrutina cada gesto? Não será pura ilusão crer na separação artificialmente definida nos termos "palco" e "plateia"? A solidão talvez forneça uma resposta possível: o foco de luz reside apenas na nossa mente. Tornamo-nos demasiadamente introspectivos e sendo assim amplificamos demasiadamente as luzes. Parece-me cada vez mais que mesmo para os que nos dizem gostar de nós, mesmo para esses, acabamos remetidos às brumas.
Pior do que a surdez em redor, a música que produzo é que é indubitavelmente destituída de volume. Não lhe consigo doar a amplitude, nem, especialmente, o timbre que de facto mereceria à nascença, quando das batidas internas, do calor dos órgãos, se reúne em tons e decibéis desejosos de partilha. Pior que a pior das recepções, é a consciência do falhanço, do ficar aquém do que se sonhou para uma determinada composição. Isso sim parece um balde de água fria despejado de uma só vez. Os tremores do corpo encharcado percutem-se a todas as células, passando a ser esse o compasso musical regente. A verdadeira música abafa-se à nascença por não haver como dar-lhe a forma devida.
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«There's not enough lines on the stave / to capture the music I crave / There's not enough to my bow / and even the barmen know / extracts from Carmen. / There's not enough notes in the scale / it feels like I'm chasing my tail. / There's not enough beats in the bar, / and bars get too busy with folks asking "Is he?"»
The Divine Comedy, Timestretched
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