Eterno limbo
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Elliott-Erwitt, Pittsburgh (1950)
.Nasci com a morte. Nasci da morte para a morte. Vivo com a morte, desde cedo, acho que desde sempre. Vi a morte bem de frente e cresci na sua devastação. Roubou-me a vida e deixou-me um bocado de rocha onde me isolar. Não poucas vezes glacial. Da primeira vez, senti-a ao abrir os olhos, depois do desmaio. Não a senti chegar, entrou em mim, imagino que de rompante, sem aviso, sem pedir licença (nunca pede) e quis levar-me. Apercebi-me sim (como havia de não me aperceber? aperceber é eufemismo gorado) da sua saída tempestuosa, semeando estragos, revirando tudo de pantanas, infligindo caos ao meu pequeno grande mundo. Sem pedir licença (nunca pede), levou-me quem amei, quem amo, desde criança - o que equivale a dizer que levou boa parte de mim. Por sorte (?) sobrevivi, tenho sobrevivido: morto, apagado, isolado, com as marcas bem vincadas da sua passagem. Desde então sinto-a todos os dias, a morte. Vigiamo-nos, entre o recato e a insinuação torpe, como velhos companheiros ou velhos inimigos que não se esquecem. O seu olhar frio, cínico, gela-me as emoções, obriga-me a desprezar a vida. No seu piscar de olhos parece querer sugerir que tem ao seu alcance o derradeiro alívio. Uma fracção de segundos, apenas, quase intemporal, e o seu poder, ao longo dos anos, não cessa de se multiplicar. As coordenadas todas em fuga. A sua inscrição no código genético de todo um lar, de toda uma existência. Uma criança não volta a ser a mesma. Faz-se adulto, mas paralisado num eterno limbo: entre o desejo de que ela venha de vez ou que o deixe em paz, o deixe apreciar um pouco isto aqui. Mas ser-se incapaz de transpôr o limbo, esperar dia após dia pelo dia seguinte para voltar a insistir, para renovar o esforço e o resultado ser sempre o mesmo - resvalar - só traz uma coisa: o cansaço. Conheço o cansaço e ela sabe disso.
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1 Comentários:
Eterno limbo...
éter no limbo.
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