sexta-feira, janeiro 11, 2008

Batata quente

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Numa certa manhã, tão longínqua quanto amorfa, cruzei-me com um mensageiro. À primeira vista notei-lhe o rosto pesaroso e uma ligeira corcunda. Mas só mesmo à primeira vista, certamente fruto de avaliação precipitada. Estudando-o com mais calma pareceu-me elegante e bem conservado para a idade, não se lhe destrinçando, como ajuízara há pouco, sinais de uma longa vida de pelejas ou de pesados fardos. Pelo menos não de ordem física. De outra ordem, suponho que sim. Expedito, o mensageiro, num movimento apurado e impositivo, barrou-me o caminho. Estaquei, sem a mínima vontade de o contornar ou dar meia-volta. Não tinha pressa. De certo modo estava-me nas tintas para o tempo. Fez-me sinal com o indicador para que me aproximasse. “Não querias mais nada.” Não movi um músculo. Nisto, sem perceber como, numa fracção de segundos, chegou-se a mim, delegando-me ao ouvido o teor da missão. Desde então sou estafeta. Empenho-me como posso, mas falta-me calo nas abordagens. Cedo descobri a regra: posições marcadas? passagem de testemunho? esqueçam! não há quem aceite parar por um instante e escutar. Reina a lei da pressa e do umbigo. Não os acuso, apenas constato. Também eu, embora estafeta, sou súbdito fiel da lei. Porém, temo que haja aqui uma nuance. Dada a condição presente, a natureza do meu dever, cabe-me amordaçar a bocarra individualista que há em mim. Se não late em maior extensão é fruto deste esforço de domesticação. Sem um catalisador externo também eu, provavelmente, não tomaria consciência. Mas as nuances são, por norma, fios duvidosos com que remendamos o fundo dos bolsos... Tenho sempre presente o que me disse o mensageiro na sua segunda aparição: “cuida-te, não exijas, sê antes paciente; sabes bem como a vida é breve, um instante aqui e no outro já não; olha, vê: mãos escaldadas todos as têm...” Até certo ponto confio. Quem me diz que todos aqueles por que passo não foram também eles destacados? Mas logo penso que se assim fosse, segundo o teor das funções atribuídas, cada um de nós deveria, antes de mais, primar por um certo rotativismo, o que, à partida, pressuporia uma boa dose de cooperação externa. Coisa que precisamente não se tem verificado. Creio que não. Entregue a mim próprio, a bem dizer, exclusivamente a mim próprio, nada posso: vejo-os passar. Sempre de passagem. E nisto frusta-se-me a razão de ser. Digo bem, a razão de ser, em virtude do que me foi confiado e que falho em transmitir. Ninguém liga, ninguém olha. Quando muito, de passagem, levantam o braço e enxotam-me com a mão sinistra. Mas um dia, creio mesmo nisso?, quem sabe numa certa manhã, farei parar alguém, falar-lhe-ei e seguirei em frente também, acompanhado. Passaremos. E, por uma temporada, as mãos escaldadas afligir-me-ão menos.
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1 Comentários:


Blogger Paula disse...

no words... cada um está fechado na sua crisálida... mas o que seria se todos fossemos esclarecidos... talvez fosse simplesmente um mundo melhor...
não deixes de escrever meu amigo...

24/01/08, 10:52  

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