domingo, fevereiro 18, 2007

Vitríolo

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Francis Bacon, Self-Portrait (1971)

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Edgar era com frequência acometido por pesadelos. Raras vezes, ao despertar, se via capaz de os reconstituir na íntegra, ou deles extrair um pingo de coerência, ou uma fímbria de sentido. Os contornos sinistros, os enredos caóticos interpelavam-no do interior de uma enorme caixa de ressonância. O grau de perturbação que imprimiam ao seu espírito, fazia ele por dissipar com música relaxante logo pela manhã e com a súbita invasão de luz no lento abrir dos estores. Porém, quais miasmas trazidos de quando em quando por ventos indesejáveis, nem por isso se dissipavam ao longo do dia. Assediavam-no precisamente naqueles instantes em que se tem um mínimo de tempo para nós, nas pausas para respirar.

Num deles era-lhe ordenado que despejasse sobre si um frasco de vitríolo. Para seu assombro cumpria a ordem sem hesitar, convencido de que daí adviria uma inusitada felicidade. Observava com estranheza o modo como a pele do seu corpo ia amolecendo. A certa altura, dir-se-ia um gelado exposto ao calor de uma fornalha, derretendo velozmente. O processo era-lhe completamente indolor como se se observasse de fora. Olhava para os braços, para as pernas, como o clínico ávido de desvendar os mistérios da decomposição. Ao mesmo tempo ocorria-lhe a ideia de ter abandonado livremente o seu corpo, para que a experiência seguisse o seu curso, sem mais interferência sua. Era então que dava por si entre a numerosa multidão que assistia com indisfarçável deleite ao sádico espectáculo. Do lugar em que se encontrava, numa das extremidades de um palanque, tinha agora uma outra percepção das coisas. Era-lhe agora impossível a anterior passividade e agonizava visceralmente a cada grito desse seu antigo corpo. Este, estoicamente, mantinha-se ainda em pé, em total imobilidade, sem sequer esbracejar, no centro do que parecia ser um estrado improvisado. Aquele corpo, já não lhe pertencendo, acabava de criar por via da dor a ligação afectiva que jamais em qualquer outra ocasião nutrira por ele. Em seu redor, a multidão, ululante, aplaudia estrepitosamente de cada vez que um pedaço de carne se destacava e tombava. O mundo na sua empedernida rota para a loucura, desde a implementação dos regimes de catarse pública.

Quando o corpo acabava reduzido a uma poça, vinham-lhe parar misteriosamente às mãos uma vassoura e os restantes utensílios de limpeza. Os olhares enfáticos de um senhor, que se prestava a fazer uma breve introdução ao número seguinte, sugeriam que ele devia apressar-se a limpar o estrado, no sentido de se evitarem atrasos na programação. Parecia não ter outro remédio senão levantar-se do lugar e dirigir-se ao estrado. Alguns espectadores, mais impacientes com a demora, iam-lhe atirando os mais diversos objectos, redobrando-lhe assim a carga de trabalho.

No final, serenados os ânimos, davam todos por bem empregues o tempo e o dinheiro dispendidos. Não se demoravam muito por ali. Despediam-se até uma próxima vez, abraçando-se como velhos camaradas que verdadeiramente se estimam, unidos na partilha de algo excepcional, maior que as suas vidas. Uns regressavam com bonomia a casa, dando pequenos pulos no ar ou mãos nos bolsos a remoer os trocos. Outros sentenciavam que agora sim a noite poderia enfim começar e dirigiam-se passo a passo aos cafés e bares das redondezas. Aí bebiam e brindavam à fortuna. Faziam votos de que as sessões não acabassem nunca. Quanto a Edgar, o varredor, nem uma palavra; dele nada mais se soube.
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4 Comentários:


Blogger Maria P. disse...

Magnífico texto!

Beijinho*

20/02/07, 22:57  

Blogger redonda disse...

História especial e muito, muito bem escrita.

21/02/07, 12:45  

Blogger Cláudio disse...

Obrigado às duas. As amigas gostam de exagerar um pouco nos elogios, mas até que sabem bem ;) Beijinhos.

21/02/07, 14:00  

Anonymous Anónimo disse...

Não são elogios, meu caro. São constatações de facto!

22/02/07, 12:12  

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