sábado, abril 01, 2006

O Evadido

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O alarme viola a noite silenciosa, dispara o alerta persecutório na prisão. O frenesim de guardas pelos corredores é absorvido pelos presos nas exíguas celas. Os portões abrem-se ante a veemência dos latidos. Os guardas são puxados por cães corpulentos, presos pelas coleiras tensas. Principia a caça ao evadido.

Sentidos aguçados. Respiração ofegante. Atravessar rápido de um baldio; agachado. O restolhar da erva seca. Mais adiante, uma frente de casas. Acendem-se luzes em algumas janelas. Medo de ser descoberto: palpitações. Forçado a tomar um desvio e rápida colagem às paredes do saguão. Latidos que se aproximam. Num canto escuro, umas escadas: uma tábua de salvação.
Uma janela entreaberta, a cozinha, o hall de entrada. Dependurado na parede, um retrato de uma personalidade conhecida. Da sala: o berreiro na televisão. Do quarto: o bater monótono de uma velha máquina de escrever. Um escritor sexagenário em trabalhos de paciência. Redacção das últimas linhas. Capítulo final do ansiado novo romance policial. O ranger inesperado da porta. A presciência de um vulto atrás de si: a mulher que vem dar as boas noites. O silêncio da máquina. O arco de um olhar. O corpo maciço de um estranho ofegante: “Vim acabar o seu livro!”. Um baque violento. Mergulho de cabeça sobre a máquina. Pingos de sangue distribuídos pelo texto, como sinais de pontuação.
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2/4/2005

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