“Rosetta”
Três desejos/pensamentos/constatações simples com que Rosetta (no filme dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que em 1999 arrecadou a Palma de Ouro), a dada altura, se aconchegou à sua almofada antes de fechar os olhos:
1 - tenho uma vida normal
2 - tenho um trabalho
3 - tenho um amigo
Posteriormente, face à precariedade do tal trabalho e na sequência de ter sido dispensada, um dos seus males foi ter privilegiado a todo o custo o segundo destes três desejos, ao ponto de trair o amigo da forma mais oportunista, para ficar com o lugar dele na venda de gauffres. O não conseguir conjugar esses três desejos, o ter entrado em contradição com eles, terá inviabilizado a hipótese de ter daí em diante uma vida normal. Esboça-se aqui, mas sem nunca se cair no erro de se limitar a essa visão redutora, a questão de como as dificuldades sócio-económicas podem fazer com que se vacile e se descarte certos princípios e valores. Após a traição, vamos pressentindo um crescente peso de consciência, que nunca é explicitado nem nas falas, nem no olhar cerrado e monolítico de Rosetta, mas que se admite a partir do momento em que ela se desfaz desse emprego, que lhe custou um amigo. A tentativa de suicídio falhada, por ter-lhe faltado literalmente o gás quando, deitada, já só esperava o derradeiro sono, parece ironia do destino a gozar, mais do que com as dificuldades de gente pobre, sobretudo com o desespero de uma alma às portas do fim. Mas na sequência disto, o final elíptico, redentório (com Rosetta a romper em pranto em cima da nova bilha de gás, que entretanto ela tinha ido buscar, e a ser amparada pelo tal amigo - que ainda há instantes lhe atirava pedras), parece confirmar que nas ironias do destino pode por vezes esconder-se uma providencial tábua de salvação, estendida talvez com idêntica dilação e hesitação sádica a fazer eco com o episódio bastante anterior da demora de Rosetta em estender o galho com que salvou o seu amigo de se afogar.
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