A perda de anonimato e a parábola dos silêncios e da solidão
.
. Àquela hora da noite ainda havia pouco movimento nas cantinas. O anonimato de um rosto em particular, um rosto que por qualquer motivo chamasse a atenção, era portanto mais difícil de manter. Numa mesa à minha frente sentou-se um senhor muito alto e magro. Antes de ficar de costas para mim, atentei por alguns segundos nas suas feições: encovadas e frágeis até mais não, encerradas num silêncio de estátua. Os olhos pareciam pequenos pontos sumidos por detrás das lentes. O cabelo era ralo e o tom de pele moreno. Os movimentos que fazia pareciam dotados de uma estranha elasticidade que se percutia aos objectos: ao casaco, à mochila, à carteira, etc. Sentou-se e levantou-se logo de seguida, como uma ponta-e-mola, para ir buscar a garrafa de água de que se tinha esquecido. No trajecto para cá: o mesmo rosto de estátua, impassível, que jamais nenhum pássaro ousaria perturbar. Sentou-se novamente (ponta-e-mola guardada no bolso). Em virtude de ser tão alto, talvez, debruçou-se quase ao nível da tijela e pôs-se a sorver lentamente a primeira colherada de sopa. Entretanto chegou um outro senhor. Cumprimentaram-se. Este último, mais vivaço, entre pousar ou não o tabuleiro na mesa perguntou-lhe se se podia juntar a ele, acrescentando num tom ambíguo: "Ou preferes jantar a sós?" Não sei se obteve resposta ou se foi a expressão do senhor muito alto e magro, o que é facto é que o recém-chegado interrompeu o ar folgazão e perguntou preocupado: "Estás bem? Passa-se alguma coisa?" O senhor muito alto e magro continuava de costas arqueadas sobre a tijela e apenas lhe distingui uns sussuros. Assim de costas, parecia-me que ele em ocasião alguma sequer olhara o outro nos olhos, como se falasse directamente para a tijela de sopa. Talvez pensasse: "Lá se foi o meu momento de paz..." O outro, contudo, insistiu: "Não me pareces nada bem... Não me queres dizer o que se passa?". Mas deve ter-se convencido de que não conseguiria arrancar-lhe mais que uns acenos de cabeça a querer dizer que estava tudo bem e lá acabou por se sentar. O senhor vivaço esforçava-se por fazer conversa, mas as suas palavras esbarravam numa parede que não lhe devolvia qualquer resposta, apenas o eco de quem continua a sorver a sua sopa. Antes de me levantar para devolver o tabuleiro, apanho uma farpa que me obriga a permanecer mais um pouco. Ou melhor, apanho de uns fragmentos de conversa o sentido de uma farpa: "Ah bom, não gostas de conversar enquanto jantas?!..." Não gostei do silêncio do senhor alto e magro, nem do tom sarcástico do outro. Os silêncios anti-naturais são confrangedores. Mesmo a quem assiste de fora. Levantei-me e fui-me embora. Por tudo isto, que pode parecer pouco, aquele senhor deixou de ser para mim um dos muitos rostos anónimos com que me cruzo aleatoriamente no meio estudantil. .
2 Comentários:
Gostei muito do que escreveste. Como se estivesse a ler um conto interessou-me saber como prosseguia e como iria terminar.
Ó Redonda, isso não vale, fazes-me corar... :)
Enviar um comentário