segunda-feira, novembro 05, 2007

Do desconsolo

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Não a via há dois três anos. Era noite de luar, a rua estava deserta, silenciosa, e nada fazia crer num desses encontros do acaso. Vi-a assomar ao passeio, aparição tão frágil que ninguém diria ser ela a dona dos seus passos. Levava pela trela um cão, irrequieto, cheio daquela despreocupada genica dos animais de pequeno porte. Causou-me impressão a força motriz do seu lento avançar parecer advir exclusivamente do pequeno animal - fiel companhia em noites assim, pressupus (e como mais tarde me afiançaram), desde que o marido falecera. Estava estacionado, a fazer tempo não sei bem para que fim, numa zona pouco iluminada pelas frouxas lâmpadas de sódio, pelo que hesitei um pouco em dar sequência ao que o acaso proporcionava. Depressa senti que era o mínimo que lhe devia, eu que miseravelmente tenho premiado pela ausência. Então, baixei o vidro do carro, cumprimentei-a, baixinho, para não a assustar. De uma lividez espectral avançou em minha direcção, intrigada, não dando o mínimo sinal de me reconhecer. Os olhos, trémulos de tristeza, esforçaram-se por me focar na penumbra. Depois: um lampejo, subtil, que lentamente se desvaneceu. Cumprimentámo-nos; conversámos um pouco. Durante todo esse tempo não me ocorreu ligar a luz de presença ou sequer sair do carro. A delicadeza, os modos - impolutos, intactos -, como sempre nela reconheci, a contrastar com os meus tiques lunares, desapegados do tacto e do saber estar. Ainda assim, dadas as circunstâncias, o clima não foi sem empatia, foi até mesmo propício a mútuas palavras de apoio e afecto. Eu mais atabalhoadamente que ela, medindo-as, receoso, sem no entanto desejar trair a sinceridade do que me afluía, perante a incomensurabilidade da sua dor. Ao cabo de um quarto de hora, despedimo-nos. Seguiu rua acima, meio combalida, tal como há instantes a vira surgir. Qual cometa, tragou-a, por fim, o negrume da noite; tendo o seu rasto, lustroso, duradouro, ficado indelevelmente impresso em mim. Algum tempo depois, invadiu-me, de novo, o silêncio da rua. Desta feita, um silêncio em nada sereno, pelo contrário, em frontal colisão comigo. Recostei-me no banco, atravessado por mil perguntas sem resposta, por mil repreensões. Apesar do seu sentido obrigado à despedida - parecendo contestar as minhas dúvidas -, varou-me a certeza de não existirem palavras capazes de uma pontinha de consolo.
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8 Comentários:


Blogger magarça disse...

Olha tantas aqui... palavras de amizade, ternura, solidariedade.. Gosto mesmo muito deste texto.

08/11/07, 21:32  

Blogger redonda disse...

...Muito bem escrito!

10/11/07, 01:28  

Blogger Maria P. disse...

Muito bem sem dúvida!
Parabéns.

12/11/07, 21:50  

Blogger papel químico disse...

o consolo entranha-se nos intervalos das palavras, na respiração. muito bonito este texto.

20/11/07, 12:25  

Blogger margarida disse...

Saudades de ler mais aqui.

20/11/07, 23:11  

Anonymous Anónimo disse...

Algum tempo depois, estava estacionado a fazer tempo. Algum tempo depois, silêncio em nada sereno. Algum tempo depois, ao cabo de um quarto de hora, a força motriz do seu lento avançar. Algum tempo depois, dadas as circunstâncias, hesitei um pouco.

30/11/07, 05:58  

Blogger Alegna disse...

Olá!

Soube que gostas de Emily Dicknson.
A vida dela intriga-me.
penso que já deves conhecer, mas
Deixo-te na mesma uma sugestão:
Promises, Carla Bruni.

Alegna

02/12/07, 00:37  

Blogger Flour disse...

Que belo retrato pintadas com tão belas palavras. Gostei muito do teu blog. Vou voltar.

http://escritapordentro.blogspot.com/

02/12/07, 18:00  

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